Nunca tive filhos. Não que eu saiba. Pelo menos aqui em casa
nenhuma mulher tocou a campainha com três rebentos de colo, todos eles de olhos
verdes, cabelos cacheados e brincos nas orelhas pra provar que são meus. Nada
contra. Até tenho amigos meus, pais e felizes. Mas nesse aspecto sou meio machadiano.
Faço do epílogo de Memórias Póstumas de Brás Cubas o meu mantra. Lá o livro se
encerra com a frase "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o
legado de nossa miséria".
Não que essa convicção seja algo sólido, já que tá na moda
falar que nossas crenças são líquidas e nossos princípios se dissolvem no ar.
Talvez um dia eu mude de ideia. Essa postura não é estanque, estamental. Mas
por enquanto é por ela que eu me baseio pra tocar minha vida. Quem sabe um dia
eu encontre uma pessoa que me faça querer ter filhos. Uma mulher que traga ao
nosso convívio a possibilidade de se fazer concessões para se atingir o
equilíbrio do relacionamento. Uma musa que traga sobre a questão muito amor,
respeito e diálogo, com argumentos persuasivos, como por exemplo... um
trezoitão apontado pra minha cabeça, sei lá.
Não pretendo ter filhos por vários motivos. O primeiro deles
é de ordem individual, mesmo. Puro egoísmo da minha parte. Caso eu os tivesse,
teria de abandonar a Galeria do Rock e passar a frequentar a Ri Happy. Teria de
trocar Velozes e Furiosos pela Peppa Pig. Passaria a acordar umas quatro vezes
por noite pra acalentar choros. Trocar fraldas. Teria de limpar o cocô dos
outros, sem demonstrar qualquer tipo de ânsia de vômito pra não criar traumas
na criança. Bebês podem até alegrar seu dia e mudar sua vida com aquele olhar
cúmplice, aquele sorriso que se forma em câmera lenta e faz você esquecer que
tem que pagar o IPVA. Mas, numa análise mais fria, não deixa de ser um moto
perpétuo de comer, chorar, cagar, chorar, dormir, chorar. Se eu quisesse um
mecanismo para se injetar alimentos e depois limpar a mistura processada não
precisaria ter filhos. Basta um liquidificador. Pelo menos tirando da tomada
ele para de berrar.
A segunda razão segue a linha daquilo que todo mundo que
opta por não ter filhos prega. Um algarismo a mais num mundo tão lotado. Um
inocente ser humano tendo de conviver com todas as desgraças que o homem
produziu. Uma pessoa que nasceu sem pedir e teria de lutar pela sobrevivência. Um
indivíduo que perpetuaria nossos vícios genéticos, que foi mais ou menos o que
Brás Cubas falou no fim do livro do começo deste texto.
Por último, não posso deixar de mencionar alguns agravantes
em relação a épocas anteriores. Sinceramente, confesso meu fracasso didático ao
não conseguir explicar para o futuro rebento uma série de comportamentos,
práticas e atitudes da sociedade moderna. Criei um distanciamento inacabável
sobre a geração que vem depois da Geração Z e nem faço ideia de qual letra do
alfabeto é utilizada pra denominá-la. Por exemplo:
- Teria de explicar ao meu filho que material escolar é
lápis preto. Que uniforme é tênis preto. Mas que ele jamais poderia chamar o
coleguinha de preto pra não correr o risco de ser expulso por racismo infantil.
- Teria de conviver com o fato de que o Érico Jr. já
nasceria sabendo todas as atualizações dos sistemas operacionais, sem precisar
recorrer aos tutoriais do Youtube. E avisaria que, já aos 3 anos de idade, é
ele quem iria me ensinar como funciona esse telefoninho que a gente carrega no
bolso.
- Explicaria que, durante a ditadura, políticos de esquerda
hoje são de direita. E políticos de direita que apoiavam a ditadura hoje apoiam
os políticos de esquerda.
- Que aos 4 anos ele deixaria de usar fraldas e aos 70 deveria voltar a usá-las.
- Que aos 4 anos ele deixaria de usar fraldas e aos 70 deveria voltar a usá-las.
- Televisão, só se for programa com fundo de teor educativo.
Tipo desenho animado que no final ensina a escovar os dentes ou reciclar o
lixo. Nada de He-Man ou esses mangás que hipnotizam criança. Três Patetas, Os
Trapalhões? Nem pensar.
- Que antigamente ele teria de falsificar carteirinha pra
entrar em filme pra 18 anos por causa da censura. E que hoje não existe mais
censura, mas ele continuaria impedido de entrar em alguns filmes por causa da
classificação indicativa.
- Avisaria que, nos filmes em que ele pode entrar, sem
censura e sem classificação indicativa, ele não iria entender mais da metade da
trama, pois as distribuidoras encomendariam pesquisas de mercado para que 40%
da história agrade os pais com referências de outros filmes, 20% agrade os
adolescentes com gírias que só eles entendem e 10% agrade as mães naquela parte
em que todo mundo da sala dorme. Pelo menos ele sairia da sessão entendendo
tudo de porcentagem.
- Que a mistura de arroz, feijão, salada e mistura hoje é
feita com salada e não com mistura.
- Apesar de alguns casais de amigos serem totalmente contra,
falaria a ele que tudo bem pedir chupeta pra mãe aos 2 anos de idade. Tudo bem
pedir chupeta pra empregada aos 5 anos. Mas que ele jamais poderia pedir uma
chupeta pra amiga de turma quando completasse 14 anos. Uns 8 anos mais tarde,
talvez.
3 comentários:
Fala, Fuksie!
Adorei o texto. Lembrei de mim antes de ser pai.
Já que você não quer filhos e acho que não plantará uma árvore, escreva um livro. Material (e talento) você tem de sobra.
Um forte abraço!
Muito obrigado. Já recebi esse conselho outras vezes, o que indica que devo fazer isso mesmo.
Me identifiquei! Rsrsrs...
Em tempo: siga o conselho do Washington, por favor.
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