segunda-feira, 1 de junho de 2020

Muito o que aprender


Poderia ter sido um grande exercício de aprendizado para a democracia. Poderia ter sido o primeiro passo para a confraternização em tempos tão odiosos. Poderia ter sido, simbolicamente, a representação real da mobilização virtual “somos 70 por cento”. Poderia ter sido o xeque-mate para o pedido de impeachment do nosso presidente. Infelizmente, não foi nada disso.

Existe um conceito aplicado ao comportamento humano, que inclusive foi o mote de uma longeva campanha publicitária da revista Rolling Stone internacional, que disserta sobre a diferença entre “percepção” e “realidade”. Percepção foram os primeiros 15 minutos da manifestação em prol da democracia. Tudo aquilo que queríamos ver e acreditar. Uma caminhada pacífica, contra os abusos de poder e de autoridade de um governo federal nada pacífico. Muito embora os protagonistas deste ato estivessem cagando pra pandemia. Não seguiram protocolo nenhum de distanciamento social. Afinal, o que são 30 mil mortos e meio milhão de infectados? E realidade foi todo o resto. Igual a uma festa. Percepção são as pessoas produzidas, maquiadas, a sensação de que vai ser uma noite inesquecível. Já a realidade compreende a bebedeira, a maquiagem borrada, a música brega, o vômito no chão. E até uma possível briga. Com torcidas organizadas, não dá pra se esperar algo muito diferente. Trajadas de paz e amor, elas cumpriram o papel que sempre desempenharam: torcidas organizadas.

Tenho a impressão de que os movimentos que buscam essa harmonia social, com base no diálogo e não no confronto, jogam esses dizeres da boca pra fora. No fundo, cada um quer alimentar seu próprio dogma. Em tempos tão difíceis, com crises que se acumulam sobre crises, com a necessidade da aceitação do contraditório como forma de compreender melhor essa paranóia toda, o que menos sobra é espaço para a tolerância. Estamos, nas redes sociais, tão divididos quanto os grupos que ocuparam as vias da Av. Paulista. Do lado do MASP, os xiitas do bem. Do lado da FIESP, os xiitas do mal. Há quem ache que as manifestações foram apenas os primeiros vídeos, com gente alegre cantando. E há quem afirme que esses protestos foram apenas os minutos finais, com quebra-quebra e a polícia bombardeando os manifestantes. Ambos estão cegos. Ambos estão errados.

O governo do Estado de São Paulo já determinou que as próximas manifestações ocorrerão em dias diferentes, para evitar o confronto. As pessoas serão revistadas com mais rigor. São algumas medidas paliativas, que podem – ou não – surtir algum efeito. Torço para que funcionem. Apesar de que, me parece, ligaram o foda-se para o coronavírus.

Achar que a polícia, de um lado, andou de mãos dadas e acobertou os bolsonaristas e, de outro lado, atacou desmedidamente os “democratas” é tomar partido. Bobagem pura. Quem acompanhou os vídeos de forma mais completa pôde perceber que a PM ficou na retranca e só avançou à medida que os black blocks de plantão também avançavam. Houve ataques e contra-ataques de parte a parte. Igual a um jogo de futebol. Houve impedimentos, expulsões, penalidades máximas e muita violência. Igual a um jogo de futebol.

Talvez o taco de beisebol tenha sido o estopim dessa barbárie. O comandante da PM, em coletiva de imprensa, admitiu que esse material deveria ter sido apreendido. Mas não dá pra saber. Tá todo mundo com muita raiva. De tudo. De todos. De nós mesmos. Não seja ingênuo a tal ponto de acreditar que aquilo foi um remake do movimento pelas Diretas Já. Não foi. Aquela mixórdia foi nada mais do que um Fla X Flu na capital paulista. Apenas o repeteco da polarização que acompanhamos nas redes sociais. “Com muito orgulho e com muito amor” é só mais uma frase de hino ufanista. Não reflete o verdadeiro sentimento dos hooligans que ali estavam destruindo minha cidade. É só a percepção, e não a realidade.

Pra finalizar: odeio futebol. Não me identifico com torcida alguma. Ainda que estivéssemos livres da pandemia, essa pândega não é pra mim. E deixar de ir às ruas não é covardia. Ou comodismo. Ou abulia de fazer parte da história do nosso país. Não, não é. O que eu sei fazer é escrever. Meu campo de batalha é o papel. Da mesma forma que o ator faz seu protesto num palco. E rezo pra que isso volte a acontecer muito rapidamente. Ou que o pintor manifesta suas angústias numa tela em branco. Isso não me torna pequeno, incapaz. O Word pode até parecer insípido e irrelevante diante de tantas inovações tecnológicas. Mas é nele que, todo dia, eu lapido cada letra, cada palavra. Até que elas tenham a força e a contundência suficientes para provocar, ferir. Eu afio as frases e amolo as pessoas. Por favor, não me chame de ignavo. Estou aqui por recomendações da Organização Mundial de Saúde. Recluso, ermitão, antissocial. A luta vem daqui e é daqui mesmo que deve vir. Não era você que, até ontem, excluía todos os seus amiguinhos do Facebook contrários ao isolamento?



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