Poderia ter sido um grande exercício de aprendizado para a
democracia. Poderia ter sido o primeiro passo para a confraternização em tempos
tão odiosos. Poderia ter sido, simbolicamente, a representação real da
mobilização virtual “somos 70 por cento”. Poderia ter sido o xeque-mate para o
pedido de impeachment do nosso presidente. Infelizmente, não foi nada disso.
Existe um conceito aplicado ao comportamento humano, que
inclusive foi o mote de uma longeva campanha publicitária da revista Rolling Stone internacional, que
disserta sobre a diferença entre “percepção” e “realidade”. Percepção foram os
primeiros 15 minutos da manifestação em prol da democracia. Tudo aquilo que
queríamos ver e acreditar. Uma caminhada pacífica, contra os abusos de poder e
de autoridade de um governo federal nada pacífico. Muito embora os
protagonistas deste ato estivessem cagando pra pandemia. Não seguiram protocolo
nenhum de distanciamento social. Afinal, o que são 30 mil mortos e meio milhão
de infectados? E realidade foi todo o resto. Igual a uma festa. Percepção são
as pessoas produzidas, maquiadas, a sensação de que vai ser uma noite
inesquecível. Já a realidade compreende a bebedeira, a maquiagem borrada, a
música brega, o vômito no chão. E até uma possível briga. Com torcidas
organizadas, não dá pra se esperar algo muito diferente. Trajadas de paz e
amor, elas cumpriram o papel que sempre desempenharam: torcidas organizadas.
Tenho a impressão de que os movimentos que buscam essa harmonia
social, com base no diálogo e não no confronto, jogam esses dizeres da boca pra
fora. No fundo, cada um quer alimentar seu próprio dogma. Em tempos tão
difíceis, com crises que se acumulam sobre crises, com a necessidade da
aceitação do contraditório como forma de compreender melhor essa paranóia toda,
o que menos sobra é espaço para a tolerância. Estamos, nas redes sociais, tão
divididos quanto os grupos que ocuparam as vias da Av. Paulista. Do lado do
MASP, os xiitas do bem. Do lado da FIESP, os xiitas do mal. Há quem ache que as
manifestações foram apenas os primeiros vídeos, com gente alegre cantando. E há
quem afirme que esses protestos foram apenas os minutos finais, com
quebra-quebra e a polícia bombardeando os manifestantes. Ambos estão cegos.
Ambos estão errados.
O governo do Estado de São Paulo já determinou que as
próximas manifestações ocorrerão em dias diferentes, para evitar o confronto.
As pessoas serão revistadas com mais rigor. São algumas medidas paliativas, que
podem – ou não – surtir algum efeito. Torço para que funcionem. Apesar de que,
me parece, ligaram o foda-se para o coronavírus.
Achar que a polícia, de um lado, andou de mãos dadas e acobertou
os bolsonaristas e, de outro lado, atacou desmedidamente os “democratas” é
tomar partido. Bobagem pura. Quem acompanhou os vídeos de forma mais completa
pôde perceber que a PM ficou na retranca e só avançou à medida que os black blocks
de plantão também avançavam. Houve ataques e contra-ataques de parte a parte.
Igual a um jogo de futebol. Houve impedimentos, expulsões, penalidades máximas
e muita violência. Igual a um jogo de futebol.
Talvez o taco de beisebol tenha sido o estopim dessa
barbárie. O comandante da PM, em coletiva de imprensa, admitiu que esse
material deveria ter sido apreendido. Mas não dá pra saber. Tá todo mundo com
muita raiva. De tudo. De todos. De nós mesmos. Não seja ingênuo a tal ponto de
acreditar que aquilo foi um remake do movimento pelas Diretas Já. Não foi.
Aquela mixórdia foi nada mais do que um Fla X Flu na capital paulista. Apenas o
repeteco da polarização que acompanhamos nas redes sociais. “Com muito orgulho
e com muito amor” é só mais uma frase de hino ufanista. Não reflete o
verdadeiro sentimento dos hooligans que ali estavam destruindo minha cidade. É
só a percepção, e não a realidade.
Pra finalizar: odeio futebol. Não me identifico com torcida
alguma. Ainda que estivéssemos livres da pandemia, essa pândega não é pra mim. E
deixar de ir às ruas não é covardia. Ou comodismo. Ou abulia de fazer parte da
história do nosso país. Não, não é. O que eu sei fazer é escrever. Meu campo de
batalha é o papel. Da mesma forma que o ator faz seu protesto num palco. E rezo
pra que isso volte a acontecer muito rapidamente. Ou que o pintor manifesta
suas angústias numa tela em branco. Isso não me torna pequeno, incapaz. O Word
pode até parecer insípido e irrelevante diante de tantas inovações
tecnológicas. Mas é nele que, todo dia, eu lapido cada letra, cada palavra. Até
que elas tenham a força e a contundência suficientes para provocar, ferir. Eu
afio as frases e amolo as pessoas. Por favor, não me chame de ignavo. Estou
aqui por recomendações da Organização Mundial de Saúde. Recluso, ermitão,
antissocial. A luta vem daqui e é daqui mesmo que deve vir. Não era você que,
até ontem, excluía todos os seus amiguinhos do Facebook contrários ao
isolamento?
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