Tem aquela piada que diz o seguinte: “sabe de quantos
portugueses precisamos pra trocar uma lâmpada? Cinco. Um para segurar a lâmpada
e quatro pra girar a escada”. É uma anedota velha. Talvez nas embarcações de
Cabral alguém deve ter achado graça. De tão gasta que ficou, a piada passou por
uma série de adaptações e reinvenções. E, só pra contextualizar, já vou
avisando: eu sou um desses portugueses.
Minhas habilidades com serviços manuais, pequenos reparos da
casa, beiram a zero. Se por acaso queimar a resistência do chuveiro, é capaz de
eu tomar banho frio no inverno. Tenho medo de errar, de quebrar, de causar um
acidente. Fico com a sensação de que sou um Rei Midas eletrostático: em tudo o
que eu encostar vai dar choque. Na teoria eu sou brilhante. Modéstia inclusa,
meu acervo de conhecimentos adquiridos nesse mais de meio século é invejável.
Em compensação, na prática eu sou uma negação. Pra mim, é difícil até pedir uma
pizza. Fico horas tentando fazer a melhor combinação entre sabores. Leio o
cardápio de delivery como se estivesse devorando um livro. Quando minha mãe
pergunta “e aí, já escolheu?” eu respondo: “calma, tô aqui na pepperone e não
dá pra parar de ler. Acho que o gorgonzola da quatro queijos vai matar o gosto
do catupiry com requintes de crueldade”. Tem também a questão das minhas
ascendências judaicas. Todos sabem que quando você divide os sabores o valor
cobrado é pelo mais caro. Se você pedir meia mussarela, meia camarão, vai ser o
queijo mais caro da sua vida. Tem que usar um pouco a Matemática Financeira
para equilibrar os custos e pedir uma combinação mais ou menos condizente nesse
sentido.
Mas eu não vim aqui falar de pizza. Vim falar de lâmpada.
Você já deve ter imaginado minha dificuldade em resolver essas coisas. Agora
imagina isso numa pandemia. Comércio funcionando de modo restrito.
Profissionais técnicos em recesso. E, mesmo os que estão trabalhando, não vou
permitir que um terceiro entre na minha casa devido ao fato de eu morar com uma
pessoa total grupo de risco. Minha mãe tem 75 anos, pré-diabética e toma
remédio pra controlar a pressão. Mais grupo de risco do que isso, só se fosse
da MPB. E se Deus me livre eu cair da escada ao tentar fazer as coisas sozinho,
não vou poder ir ao hospital. Lá é o foco da Covid. Todas as áreas estão
reservadas a pacientes com essa doença. Nenhum médico vai querer sair de sua
ensandecida rotina de UTI pra examinar apenas uma costelinha quebrada. Caso
isso acontecesse comigo, teria que me tratar com caixas e caixas de Dorflex até
que a situação se normalize. Ou seja, no Natal.
Pois bem. Vamos aos fatos. Mais ou menos no começo da
pandemia, queimou uma lâmpada do meu quarto de trabalho. Fui deixando porque,
assim como você, acreditei que essa quarentena duraria 20 dias e em seguida
poderíamos tocar o barco. Os dias passam, a gente tá numa noventena, perto da
centena. A coisa foi ficando insustentável. Claro que durante o dia dá pra usar
métodos homeopáticos, como por exemplo abrir a janela pra deixar o sol iluminar
o ambiente. Deixar a luz acesa do outro quarto mais próximo. Tudo isso. Mas o
problema foi se agravando. E minha vista também. Durante a quarentena, creio
que ganhei em graus de miopia a mesma coisa que ganhei em quilos. Quem voltar a
me ver daqui a algum tempo vai encontrar uma mistura do cantor Péricles com o
Mr. Magoo.
Não pense você que é uma troca fácil de lâmpada. Eu não sou
tããão desajeitado assim. Se fosse uma estrutura simples, bastava desatarraxar a
lâmpada queimada do soquete e substituir por uma nova, fazendo o mesmo
procedimento. A lâmpada que estragou estava acoplada a um lustre, que faz parte
de um conjunto composto por um ventilador de teto. Olhei, examinei minuciosamente
o aparelho, e não encontrei nenhuma abertura aparente no globo (aquela parte de
vidro que encobre a lâmpada propriamente dita. Não sei qual é o nome técnico
dessa geringonça, mas vou passar a chamar assim). Não restando outra
alternativa, fui obrigado a entrar no Google pra consultar algum vídeo tutorial
explicativo sobre o tema. Isso mesmo, caro leitor. ENTREI NO GOOGLE PRA VER
COMO SE TROCA UMA LÂMPADA. Enquanto você usa seu tempo para ver as lives do seu
cantor preferido, ou de algum especialista na área econômica, algum
epidemiologista, eu passei o feriado de Corpus Christi aprendendo com um
eletricista. E não é que apareceram vários vídeos na busca? Fiquei mais
aliviado ao constatar que não sou o único do planeta com essa dificuldade. Na
dúvida, assisti a TRÊS VÍDEOS. Afinal, quando o assunto é complexo e envolve os
pareceres de profissionais da área acadêmica, é sempre bom consultar uma
segunda opinião. Nesse caso, os três foram unânimes ao mostrar travas internas
e explicar que bastaria girar o globo para tirá-lo do lugar, trocar a lâmpada e
fazer a mesma coisa depois, em sentido contrário.
Tentei seguir as recomendações. Obviamente, não consegui.
Comecei a girar o globo do seu suporte e, sem sucesso, ele não se soltou. O
conjunto do lustre girou em falso e fiquei com medo daquilo tudo se soltar do
teto e cair no chão. Aliás, vou confessar uma coisa. Quando vou a algum lugar
com ventilador de teto, tipo uma padaria, e fico olhando fixamente pro
aparelho, me dá a impressão de que a velocidade das pás do ventilador aumenta e
elas vão adquirindo uma força a tal ponto de se soltarem do teto. Sempre fico
achando que aquilo algum dia vai fazer o maior estrago. Que o ventilador vai cair
no chão e as pás metálicas vão cortar as cabeças dos clientes. Na dúvida,
sempre evito ficar embaixo de um. Na minha casa, eu não quis contar muito com a
sorte. Desisti. Putaço. Liguei pro meu irmão pra resolver outros assuntos e, no
contexto, comentei sobre meu ensaio sobre a cegueira. Ao contrário de mim, meu
irmão tem mais prática com essas coisas. Ele pesquisa. Se não descobre, fuça.
Se der errado, tenta de novo de outro jeito. Pesquisa de novo. Tenta de novo,
até acertar. Eu não. Tento uma vez. Não consegui, fico uma pistola e vou
descarregar minha raiva no Facebook. Entre uma pesquisa e outra, descobrimos
que o modelo do meu conjunto lustre+ventilador não tinha nada a ver com os dos
três vídeos. Fui abençoado de ter em mãos um modelo único de uma série
limitada, cujo encaixe e desencaixe se dá de forma diferente e exclusiva. Em
vez de girar pro lado, tem que puxar o globo pra baixo. Claro que meu cagaço
aumentou na velocidade das pás. Já imaginei o centro gravitacional da Terra
chamando eu, minha escada, os estilhaços do globo, os estilhaços finíssimos da
lâmpada queimada e as pás assassinas. Fiquei até imaginando como começaria
minha carta de despedida à minha família, a você e a todos os que me acompanham
nas redes sociais. Preferi deixar quieto e voltar a ser cego até o ano que vem.
Só que minha teimosia falou mais alto. Eu não podia desistir
assim fácil. Fui lá novamente subir a escada e, com a precisão cirúrgica das
mãos e dos dedos, pressionei cuidadosamente o globo pra baixo. Consegui! Aquilo
pra mim foi a glória. Sensação de policial que desmonta cativeiro de sequestrador
e consegue resgatar a vítima das travas e entranhas do lustre. Saí carregando a
peça de vidro com a mesma alegria de quem acaba de ter um filho. Até pensei em
dar um nome àquele ornamento com cara de joelho: “vai se chamar Gabriel”. Conduzi
o rebento até a sala como se fosse meu troféu. Minha emoção pelo feito, sem a
ajuda de nenhum parente, vizinho ou técnico em Eletricidade, foi igual ao
Romário quando marcou seu milésimo gol. Pra falar a verdade, nem sei se o
Romário fez mil gols em sua carreira. Não entendo nada de futebol. Odeio esse
ludopédio, acho muito chato. Quem fica correndo na grama atrás de uma bola não
é craque, é labrador.
E assim termino essa aventura de isolamento social. Meu
quarto tá com lâmpadas novíssimas, iluminadíssimas. Aqui de noite é tão claro
como o dia que parece que eu tô na Austrália. Agora as paredes reluzem mais do
que as areias de Fernando de Noronha. Em meio a tantas notícias tristes,
finalmente um final feliz. E sem o globo pra me atrapalhar.
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