terça-feira, 30 de junho de 2020

Farmácia


Minha mãe tem uma amiga de longa data que é dona de uma farmácia no Centro de São Paulo. Eu mal conheço essa amiga, muito menos a farmácia. Mas quero acreditar, no meu imaginário onírico, que se trata daquelas farmácias tradicionais. Com piso de mármore e prateleiras de madeira escura com portas de vidro. Daquelas em que o farmacêutico tinha que subir numa escada gigante para procurar algum medicamento mais raro. Não essas farmácias de hoje em dia, tudo Nutella. Hoje você entra numa farmácia e, se não fosse a fachada com a logomarca, você nem sabe a diferença entre uma e outra. Tudo muito igual, com a mesma cara. Muito genérico. E eu nem estou me referindo aos medicamentos de preço popular. Hoje você entra numa farmácia, se espreme nos corredores minúsculos pra não esbarrar em nada, e é atendido por uma moça que parece caixa de loja de departamentos. Não importa se você vai pedir um paracetamol ou o quebra-cabeça do Hulk. Se bobear, é até capaz de a farmácia vender esse quebra-cabeça. Ela vai te olhar com uma mecânica frieza e indiferença, vai abrir uma tela de computador, procurar no sistema se o produto encontra-se disponível em estoque e perguntar se você tem algum plano de saúde. Eu tô falando daquelas farmácias legítimas. Farmácia-raiz. Farmácia com ph. Daquelas em que você sente o cheiro de álcool porque atrás do balcão tem os biombos onde clientes tomam injeção. Daquelas em que não existia sistema. O próprio farmacêutico conhecia todos os medicamentos de cor e salteado. O sistema era sua memória. A planilha Excel era uma caneta-tinteiro que ele guardava no bolso de seu avental branco. É esse tipo de botica que reina meu inconsciente imaginário. Onde o dono foi colega de classe do Oswaldo Cruz. Onde tinha um cartaz amarelado do Biotônico Fontoura ao lado de uma balança mecânica com uma espátula vertical metálica embutida para medir sua altura. Numa época em que era impossível pagar suas compras pelo aplicativo ou com cartão de crédito. Era tudo no dinheiro vivo, guardado na gaveta de uma gigantesca caixa registradora que abria e fechava por meio de uma manivela.

Pois bem. Me parece que a amiga da minha mãe tem essa farmácia há muitas décadas. Acho que desde o suicídio do Getúlio Vargas. Provavelmente deve ter tido seu momento de apogeu. Sua glória mercantilista. Mas, com o tempo, acredito que acabou sofrendo o desgaste natural de um comércio bairrista. Por causa da concorrência. Da modernidade invasiva e avassaladora das grandes redes. Anos atrás, minha mãe conversou com essa amiga e soube que ela pretendia passar o ponto pra frente. Creio que o negócio ficou insustentável. A crise do país, o valor do aluguel, a folha de pagamento dos funcionários e suponho o que seja ainda pior: a falta de clientes. Disse minha mãe que ela tentou vender o estabelecimento para alguns grandes conglomerados de drogarias, mas não recebeu nenhuma proposta satisfatória. Eis que, recentemente, minha mãe me conta que soube por terceiros que essa amiga foi obrigada a fechar as portas. Encerrou as atividades de um projeto no qual se dedicou quase sua vida inteira. Entrou em bancarrota porque a conta não fechava. Isso, pelo que se soube, pouquíssimo tempo antes do início da pandemia.

O novo coronavírus é o principal responsável pela recessão mundial. Colocou milhões de trabalhadores nas ruas. Quebrou o pequeno e microempresário. Fez o número de desempregados dobrar aqui no país. Afundou as contas públicas. Botou os fundos emergenciais no negativo. Colocou em colapso vários setores da Economia, exceto um: medicamentos e derivados. Nos últimos meses, nunca houve uma procura tão grande por remédios. Logo nos primeiros dias de quarentena, faltava máscara e álcool gel nas farmácias. A cloroquina, até então vendida sem prescrição médica, sumiu das prateleiras. Sabonete passou a vender que nem água. Qualquer produto com promessas próximas do combate ao novo vírus, como bactericidas em geral, tiveram seus estoques zerados. Vermífugos então, nem se fala. As pessoas entram na loja pra fazer a compra do mês. A farmácia passou a ser o porto seguro da sociedade. O verdadeiro shopping center da cidade, que não precisou passar por um processo rigoroso de reabertura restritiva. Empresários do ramo que dobraram seu faturamento mostraram ser maus empreendedores. Na média, a maioria deles viu seu lucro quintuplicar. É o único segmento de mercado em que os donos estão rindo à toa. Os planos de expansão de seus negócios não param de ser noticiados. Eu vejo na TV o rosto do Sidney Oliveira, proprietário da Ultrafarma, mais do que do Jair Bolsonaro.

Nesse período de isolamento, pude observar e aprender muita coisa, em especial uma: tem gente que é azarada pra caralho.


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