domingo, 20 de setembro de 2020

Bateria

Durante um bom tempo da minha vida fui muito apegado à bateria. Gostava da riqueza sonora que se pode extrair daquele monte de pratos e tambores. Um verdadeiro aparato de objetos alinhados (acho que é por isso que se chama “cozinha” da banda), um pouco mais recuados da linha de frente do grupo, mas que produz uma barulheira sem precisar de microfones. Sempre admirei a versatilidade de quem toca. Primeiro, porque um bom baterista precisa ter braços e pernas funcionando de modo independente. É como se uma parte do cérebro comandasse cada um desses membros, para que um possa funcionar de modo emancipado em relação ao outro. Segundo, nota-se que um baterista tem a mão leve, quase uma mão boba, e segura as baquetas como se estivesse empunhando uma pena.

Eu até tentei tocar bateria. Cheguei inclusive a comprar uma Pinguim básica. Só que, por mais que me esforçasse pra aprender, percebi que aquilo não era pra mim. Não só por exigir horas e horas de estudo. Isso serve pra qualquer coisa que se queira aprender, até mesmo bordado. Mas a as aulas de bateria pressupõem o dom inato da coordenação motora, algo que não tenho. Então, o aprendizado ficou muito mais árduo pra mim. Minhas primeiras aulas foram num conservatório perto de casa. Pra se ter uma ideia, em menos de seis meses houve a troca de três professores. O primeiro vinha da escola do jazz, e queria que eu fosse um Gene Krupa já nos primeiros ensaios. Caiu fora. O segundo era exatamente o contrário. Era baterista de igreja, alto, vozeirão, vestia-se de preto. Parecia o Tropeço, da Família Addams. E ficava aulas e aulas no primordial beabá dos tambores. Caiu fora também. Já o terceiro era mais rock and roll. Mais gente boa. Só que suas aulas deixavam um pouco a desejar. Logo depois quem caiu fora do conservatório fui eu. Fui ter aulas particulares com um professor que mora em apartamento. Ou seja, eu batia as baquetas em pedaços redondos de madeira forrados com uma borracha pra abafar o som. Tipo ver filme pornô no modo mute. Perde-se o tesão. Falando em tesão, logo nas primeiras aulas percebemos que não havia química alguma entre professor e aluno. O local era meio fora de mão, os horários eram péssimos, eu chegava cansado no apê do mestre e, como se não bastasse, não havia aquela descontração. Quando falei pro cara que pretendia largar o curso, a cara de alívio dele foi notória. Enfim, juntando a minha dificuldade de ganhar destreza, mais os métodos não muito estimulantes dessa sequência breve de instrutores, a bateria passou a ser um fardo pra mim.

Mas isso não vem ao caso. OK que uma vez me mandaram providenciar pedaços de ferro e uma borracha pra que eu pudesse treinar meus punhos a ficar mais soltos, e não adiantou nada. Me via como o Karatê Kid nas aulas do Professor Myiagi. OK que eu comecei a ler partituras por conta própria, mas não conseguia executar as colcheias e semicolcheias escritas. OK que eu só fui aprender nos tutoriais do Google, anos e anos mais tarde, de graça, aquilo que deveria ser a primeira aula (paga) ensinada pelos professores presenciais: os jeitos corretos de segurar as baquetas. Ainda assim, a bateria despertava em mim por vários anos um encantamento indescritível. Hoje eu me identifico mais com outros instrumentos e outras formas de se produzir sons.

E é por causa desse remoto momento da minha vida que eu quero homenagear os bateristas. 2020 não está sendo fácil pra ninguém, fato. Mas, especialmente para os bateristas, é um ano pra lá de horrível. Não sei se, por causa da quarentena, a gente acaba prestando mais atenção aos fatos fúnebres. E, estatisticamente, esse ano está sendo absolutamente igual aos outros. Ou, por uma infeliz coincidência, esse ano foi mais cruel com os mestres das caixas e dos bumbos. Mas é bom deixar registrado que, logo de cara, no começo de janeiro, o mundo perdeu o mago Neil Peart, do Rush. Ele era o rei. Não dá pra deixar de notar o quanto influenciou toda uma geração, até mesmo o fodástico Mike Portnoy. Vinha tendo problemas de saúde já faz um tempo. Tanto é que a banda chegou a dar um tempo por conta disso. E, estranhamente, foi vítima de boatos inúmeras vezes noticiando em fake news sua morte. Só que, em 7 de janeiro, infelizmente o acontecimento foi verdadeiro.

No mês passado foi a vez do competente Frankie Banali. Ex-integrante do WASP, ficou mais conhecido por sua participação duradoura no Quiet Riot. Chegou a produzir alguns álbuns da banda. Banali mandava muito bem no hard rock, um gênero que supostamente não exige tanto desse tipo de profissional.

E ontem perdemos Lee Kerslake, ex-Uriah Heep, que chegou a gravar originalmente os dois primeiros discos do Ozzy Osbourne. Nem tão notório e criativo quanto Peart, Kerslake foi um senhor baterista. Seu estilo lembrava vagamente algo do professor Ian Paice.

Três lendas que se partem. Vítimas de câncer. Torço para que esse número não aumente. O mundo ainda precisa de música para alimentar nossos ânimos e acalmar nossos nervos.

 

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