domingo, 27 de setembro de 2020

Flash Power

 

Por que os produtos ficaram com gostos tão piores em comparação a épocas remotas? Por que as opções mais saborosas são sempre as que saem de linha? Por que a gente é obrigado a repetir o jargão “já não se fazem mais como antigamente”? Tá certo que parte das respostas se deve mais à nossa memória afetiva do que ao gosto propriamente dito. Com o tempo, nosso paladar vai mudando.

Antes de continuar, um parêntesis. Entendo, respeito e até concordo que produto bom é produto in natura. Que nada se compara a uma boa salada, ou a qualquer preparo feito somente com ingredientes naturais, longe e livres de conservantes e acidulantes. Mas o assunto aqui é cultura pop. E, nesse intervalo, permito-me fazer um arrazoado sobre gororobas industrializadas. Se você adota uma postura mais radical, ou se não gosta, ou simplesmente pouco conhece essas mercadorias com gosto de plástico, melhor nem ler o texto.

Voltando. Conforme mencionei, parte dessa saturação se deve à transformação das nossas papilas gustativas. Parte. É bem verdade que vários produtos de sabor insuperável ficaram na saudade. Quer ver? Paçoca Amor, por exemplo. Aquilo lembrava infância. Qualquer infância. Não importa a idade, região ou classe econômica. Voltou a ser fabricada por alguma dessas empresas que fabricam também outras marcas de alimentos. Ficou um lixo. Quer mais? Diamante Negro. Por que resolveram tacar açúcar numa relíquia que outrora já era suficientemente adocicada? Aliás, por que todo chocolate da Lacta hoje é intragavelmente dulcíssimo? Acho que o mestre culinário joga um açucareiro pra dar o toque final. Aquilo é um convite rápido pro diabetes. Junto com a embalagem, deveria vir de amostra grátis um frasco de insulina.

Um dos prováveis motivos para esse decréscimo de qualidade é econômico. Pequenas empresas, cujos produtos eram mais artesanais, autorais e tinham um certo tom de autenticidade foram compradas por grandes empresas. Hoje o parque industrial alimentício se resume a não mais do que meia-dúzia de magnatas do setor. Tudo virou commodities, com valor de mercado, para agradar mais aos acionistas do que satisfazer o paladar das crianças. Tudo ficou muito genérico, muito parecido. Assim como o mercado de roupas, de perfumes, de celulares. Em boa parte, esses conglomerados da indústria alimentícia também fabricam produtos de outros segmentos, como os voltados a higiene e limpeza. É o caso da Unilever, por exemplo. Tenho a impressão de que tudo passa pela mesma linha de montagem. É por isso que a ideia de que os supermercados nos oferecem uma infinita variedade de cores e sabores é ilusória. É por isso que todas as comidas produzidas em escala têm gosto de sabonete e cheiro de fralda. E se você por acaso ainda se encanta com o capricho das relíquias fabricadas em pequena escala, tipo o queijinho canastra de Camanducaia, pode tirar o cavalinho da chuva. Mais cedo ou mais tarde a Coca-Cola vai pagar uma fortuna por essa empresa só pra poder dominar o mundo. E aí, meu caro, a única coisa que você vai encontrar é um saquinho de meia-cura processado sabor uvas silvestres.

Paradoxalmente, no meio de tantas coisas que se parecem uma só, existe uma brecha criada por esses mesmos oligopólios que permite invencionices um pouco mais ousadas. São as famosas edições limitadas. Pensadas para diversificar a mesmice, ou checar o nível de adesão de um mercado-teste, ou somente alavancar as vendas num determinado período reduzido. De um modo geral, eu curto essas séries especiais com prazo de validade reduzido. Tinha um Guaraná Antarctica que no final deixava um geladinho na garganta. Era excelente. Só que acabou. Tinha uma Pepsi de sabor acentuado que era interessante. Outra com um toque de gengibre. Acabaram. O que ficou foi essa tal de Pepsi Twist Zero, de gosto horrível. Tem mercado pra isso? Ou os marqueteiros lançam e tiram produtos de linha na base do chutômetro? É por essas razões, decisões estratégicas tomadas por marqueteiros e não por gastronomistas, que somos obrigados a repetir “o que é bom dura pouco”. E o que é ruim sobrevive uma eternidade.

Só pra você ter uma noção da bizarrice que é o mercado de alimentos, tempos atrás a Ruffles resolveu criar um concurso. Os consumidores deveriam enviar receitas (!!!) para a Elma Chips, sugerindo e indicando novos sabores da batatinha. Os três sabores mais bem avaliados seriam comercializados por um curto período e submetidos a uma votação de público. Em seguida, o sabor campeão passaria a fazer parte da linha. Nessa brincadeira, a galera degustou batata sabor strogonoff e sabor feijoada. É sério! O que se passa na cabeça desses executivos? Cadê o bom senso? Nesse caso específico, o fato dessa estranheza sair logo de linha foi mais do que bem-vindo.

Eu gosto bastante de energético. Sim, cada um na sua. Me respeita. Tenho o paladar um pouco mais doce, fazer o quê? Você toma sua cerveja, que tem sabor amargo, cheiro de mijo e quando ingerida junto com a comida parece que você tá comendo fermento. E eu não falo nada, fico na minha. Energético é tipo um upgrade do refrigerante. Que, por sinal, adoro também. Tomo desde o começo do século, quando sua venda era restritiva e a polícia vivia invadindo a Galeria Pajé para apreender os estoques contrabandeados. Na época, era tipo um rebite da classe alta. O combustível das raves. Existia todo um mito sobre o energético. Que causava taquicardia, que tinha alucinógenos em sua composição. Tanto é que só era vendido em bares e baladas. Uma latinha custava o equivalente a uma dose de Ballantine’s. Hoje não. Você encontra energético em tudo quanto é supermercado. É uma pequena seção ao lado dos refrigerantes. Com pouquíssimas opções de marca. O apelo publicitário é sempre o mesmo: nomes e imagens associados a fenômenos meteorológicos, reações elétricas, animais selvagens, grifes esportivas e, em alguns casos, evocações ao Satanás. Marcas produzidas por esse conglomerado que faz cartel. Se quiser experimentar algo diferente, você precisa ir a um atacado de bebidas ou a algum boteco mocozado.

Apesar do meu apreço pelo líquido, admito que são poucas as marcas de fato gostosas. A maioria erra na composição gasosa. Ou na combinação do xarope. Alguns amigos meus não veem diferença nenhuma, acham que é tudo tubaína misturada com anfetamina. Até entendo essa colocação. Várias marcas realmente fazem substâncias muito parecidas. Mas o bom entendedor sabe a diferença. E eu sempre gostei do Flash Power, desde os primórdios. Red Bull é bom, muito bom. Mas Flash Power é imbatível, disparado o melhor. Tem um gosto um pouco mais sutil. O problema é que é pouco encontrado. Tem uma péssima distribuição. O que faz aumentar meu apego sentimental por ele. De tão difícil achar, outro dia tive que fazer uma compra on-line. O pedido foi cancelado porque não havia produto no estoque. Soube que mudou o fabricante, o distribuidor, o que deve ter piorado a situação.

Ontem encontrei o energético numa loja física. Louvado seja. Percebi que a embalagem tá um pouco diferente. O rótulo não é mais impresso diretamente no alumínio. Existe uma fina película adesiva sobre a lata. Isso me preocupou um pouco. É uma característica comum a produtos de segunda linha. Achei que fosse um pormenor, um modo de fabricação mais em conta do ponto de vista econômico. Só que não. O gosto também mudou. Ficou meio parecido com a edição limitada do Red Bull sabor coco com açaí. Que, a meu ver, tem gosto de sabonete. Não achei exatamente ruim. Mas bateu saudade do sabor original. Que, pra variar, vai ficar apenas na memória.

 

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