quarta-feira, 21 de julho de 2021

Libertas quae sera tamen

 E agora?

Dizem que quando você deixa um pássaro preso na gaiola por muito tempo e depois solta, a primeira coisa que ele faz é voltar pra gaiola. Talvez pelo medo do mundo. Ou por um reflexo condicionado do behaviorismo. Ou por sentir que a gaiola é seu habitat. Não sei. Nunca tive passarinho. O máximo que tive foi um papagaio. Demos a ele o nome de Severino. Viveu por uma semana. Na época eu, que era bem pequeno, não entendi essa morte súbita. Nunca lhe faltou água nem comida. Hoje meu campo de compreensão é um pouco maior. Um animal silvestre, transportado ilegalmente dentro de um canudo de diploma universitário, vendido em feira clandestina, trazido e criado sob o controle de uma tornozeleira eletrônica 24 horas por dia, amarrada por uma corrente ao poleiro, não poderia mesmo ter vivido com dignidade. Morte e vida severina foi a parte que coube ao latifúndio do meu periquito de estimação. Claro, fiquei chateado. Queria ter em casa uma ave que repetisse tudo o que eu falava. Mas, vamos combinar. Se é pra ficar ouvindo a reprodução sonora das minhas palavras, eu não precisava destruir a fauna amazônica e trazer pra selva de pedra um psitaciforme. Bastava um gravador.

Apesar de não passarem por esse tipo de contrabando venerado por Ricardo Salles, os demais passarinhos comercializados dentro da mais transparente legalidade, com direito a nota fiscal e pedigree, devem sofrer a mesma clausura. Nas gaiolinhas domésticas ou nos espaçosos viveiros. Estes talvez sejam ainda piores. Dão à espécie voadora a falsa sensação de conforto, lazer e tranquilidade. É como se estivessem promovendo um Residencial Fasano com vista para a natureza e entregando um Bangu 9. 

Hoje nós estamos que nem esses passarinhos. Mesmo não sabendo voar. Ganhamos a liberdade, ainda que tardia. Poderíamos estar livres desse maldito vírus muito tempo atrás, quando o pessoal lá de cima recusou as inúmeras tentativas de contato dos representantes da Pfizer e abriu as pernas - ops, portas para verdadeiros trambiqueiros de plantão. Chegamos a mais de meio milhão de mortos, quando esse número poderia beirar os 100 mil. O que já é um absurdo, diga-se de passagem. Quem diz isso não sou eu. É o epidemiologista e professor Pedro Hallal, com seu estudo minucioso apresentado na CPI da Covid. Ganhamos a liberdade porque ganhamos a luz. Voltamos a usufruir um pouco do Iluminismo depois de um longo período (que pareceu ser muito mais longo) de obscurantismo, decisões tomadas com base no ocultismo, no negacionismo, no curandeirismo, nas declarações de cercadinho, nas conversas secretas travadas em gabinetes das trevas, lotados de integrantes que queriam colocar em prática suas ideias estapafúrdias com verbas de orçamento paralelo.

De uns dias pra cá, o Brasil passou a dar o exemplo de um bom Brasil. Aquele país que já foi referência na vacinação em massa e na descoberta de novos imunizantes. Aquela nação que desenvolveu uma logística séria de inocular anticorpos no braço de 1 milhão de brasileiros por dia, e não aquele rascunho atrapalhado do general rastaquera dia D e hora H. Finalmente a maioria de nós já recebeu a primeira dose. Estamos a poucos passos de nos vermos livres do vírus e do verme - torcendo muito aqui pelo impeachment. Não somos mais afetados por fake news robóticas, nem por depoimentos sem comprovação científica. Muito menos pelas teorias conspiratórias medievais, já que excluímos nossos ex-amigos bolsominions de nossas bolhas. Enfim, vamos tirar nossas tornozeleiras e voltar a viver. Voltar a exercer nosso direito de ir e vir. Mas, ir pra onde?

A gente meio que se acostumou a essa vida em solitária. Durante quase dois anos, estivemos encarcerados em nossos próprios lares. Ficamos prisioneiros do home office e das videochamadas. Trocamos o "oi, tudo bem?" pelo "cês tão vendo minha tela?". Nossa vida agora cabe em um monitor 16 polegadas. Nossas roupas, nossas comidas, nosso transporte é solicitado por um aplicativo. O celular é o nosso shopping center. Temos a sensação de que o mundo está ao nosso alcance, quando na verdade desfizemos o hábito de ir até a esquina. A única coisa que não abrimos mão foi descer do prédio e tomar aquele solzinho de presidiário.

Só que agora tudo vai ser diferente. A gente vai voltar a voar. Claro que durante esse biênio todos nós demos as nossas escapadinhas. E o que vimos não foi nada bom. As tradicionais ruas do comércio ostentam uma fileira de portas fechadas. A gente já nem sabe mais se fecharam de vez ou se estão cumprindo aqueles horários estapafúrdios de funcionamento, em que cada semana essa flexibilização é de um jeito diferente. O Comedians fechou pra sempre. Meu sonho era se apresentar lá, pelo menos uma única vez na vida. O Zais fechou pra sempre. Não fazia parte dos meus sonhos frequentar a casa mais dançante de São Paulo, mas confesso já ter ido lá uma noite. Não foi exatamente pra dançar tango e bolero, mas revelo que meus objetivos foram alcançados. Em compensação, a gente se depara com uma série interminável de farmácias. Desde as recém-inauguradas, até as gigantescas que ficaram ainda maiores. Em São Paulo, farmácia é o novo bingo. Tem uma em cada esquina.

Sim, já estamos vacinados e praticamente imunizados. Mas isso não significa que sairemos em ritmo de comemoração. Comemorar o quê? As perdas de amigos e familiares? O desemprego recorde? A recessão com inflação? O abismo ampliado entre os mais ricos e os mais pobres? O aumento da violência doméstica? Sei lá. Precisamos ir pras ruas, cheirar fumaça de óleo diesel, sentir que ainda estamos vivos. Nem que seja pra daqui a cinco minutos voltarmos pras jaulas da nossa pequenez. Assim como faz um canarinho.


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