De uns quatro anos pra cá, coisa recente, minha mãe tem se dedicado mais à religião. Como as festas judaicas mais ou menos coincidem nas datas com as festividades cristãs equivalentes, é mais ou menos nessa época de fim de ano que o rabino e um de seus filhos vêm aqui em casa à noite nos visitar e acender umas velas. Tudo meio de surpresa, sem avisar com antecedência. Da primeira vez, até me assustei. Parou debaixo da minha casa um Santana, modelo época em que fazia faculdade, com uns faroletes acesos pendurados no teto. Do interior do automóvel saía um som que eu não sabia se era da Rocinha ou da Faixa de Gaza. Mas, claro, a culpa foi minha, por não entender o idioma proferido nas canções. Fechei a cortina, como se aquilo não fosse comigo. Segundos depois, toca a campainha. Juro, achei que era bandido. Olhei de soslaio, pela fresta do pano. Só então constatei que um senhor de longas barbas brancas, terno escuro e um volumoso chapéu preto não iria me fazer mal algum. Pelo contrário. Deixei-o entrar, junto com sua cria. Só que aquilo tudo foi meio que na base do improviso. Antes da cerimônia começar eu precisava vasculhar meu guarda-roupa pra procurar meu kipá. E o rabino estava com uma certa pressa. Tipo Papai Noel. Aquele senhor de barba branca precisava também adentrar outras casas (não pela chaminé) e proferir suas sábias bíblicas palavras a outros indivíduos que fizeram bar-mitzvah. Para cada vela acesa, uma reza. Para todas as velas, um castiçal específico dessa ocasião. E, ao final, lá estava eu, de mãos dadas com o rabino, com o filho dele, fazendo um círculo na sala (somente homens), girando e cantando como se fosse ciranda-cirandinha. Eles, os religiosos, de terno de algodão e camisa de linho puro. Eu, de bermuda, Havaianas e camiseta da Dotz que uso pra dormir.
Eu só fui abduzido pelo Natal mais recentemente. Após namorar cristãs um pouco mais fervorosas, cujas famílias me acolheram muito bem. E sempre acompanhei, mais ou menos como um figurante, toda a agitação da rotina que a ocasião pede. Em alguns anos, era notório meu costumeiro mau-humor. Pelo fato de eu não poder fazer nada pra ajudar, e não saber fazer nada, e ninguém querer que eu fizesse coisa alguma, era completamente ignorado. Me sentia o bombom Caribe da caixa da Garoto. Hoje até entendo. Não dá pra ter toda a atenção máxima do mundo. Os organizadores da festança precisam pensar, em tempo recorde, na comida, na árvore e nos presentes. E não é uma comida qualquer. É um serviço de buffet, com entrada, pratos principais e sobremesa. Tem ave, tem porco, tem tudo. Comilança de carne pra deixar o Ibama preocupado. Também não é qualquer árvore. Tem que pendurar umas bolas da espessura de uma casca de ovo. Tem que amarrar uns fios cujas veias são dispositivos de led. Fios que, quando são retirados da caixa, parecem a Rua Vergueiro: você não sabe onde começa e onde acaba. E jamais, em hipótese alguma, vai conseguir colocar de volta na embalagem. Tem que pensar também onde deixar o botão liga-e-desliga daquela interminável música em versão midi que vem acoplada de brinde a esse iluminado fio. Para deixar o menos visível possível. É um som até simpático... nos primeiros 45 segundos. Depois, aquele pot-pourri de Noite Feliz a noite inteira fica tão insuportável que dá até vontade de botar na vitrola a música da Simone. Além disso, não é só um presente. Você precisa embalar mais de meia-dúzia deles. E, antes de embalar, precisa comprar. É lembrancinha da 25 de Março para a avó, é docinho da Cacau Show para a horda de sobrinhos, é um perfume bacana pra namorada. Isso sem contar os diversos amigos secretos, amigos ocultos, amigos do desapego, amigos da onça organizados pelo tiozão do pavê.
Tudo isso faz parte do jogo. Das estratégias comerciais que deixam o véio da Havan milionário. E são situações relativamente recentes. Mas o verdadeiro espírito do Natal baseia-se na simplicidade. E essa lembrança eu guardo dos tempos remotos lá da minha infância. Em frente à minha casa morava a D. Anita, uma simpática espanhola. Nunca se casou. Junto com ela morou, durante alguns anos, tenho uma vaga recordação, o Seu Pedro. Um pouco mais sério do que ela, mas igualmente simpático. Saía quase todo dia de manhã bem cedinho, carregando uma maleta. Minha mãe me explicou que a profissão dele era afinador de órgãos do Mosteiro São Bento. Não fazia ideia de qual seria seu trabalho, seu job description, suas aptidões e competências, o que ele precisaria preencher ao final do dia no Trello dos anos 70. Era muito pequeno pra entender. Mas só o nome do cargo já trazia uma importância sobrenatural. Algo de uma nobreza embutida, por se definir como um afazer tão clássico, tão específico e tão único. Quantos afinadores de órgão você conhece? Guardadas as proporções, o Seu Pedro era o afinador dos instrumentos do Metallica. E não é só isso. Seu local de trabalho era tipo um Google da época. O Mosteiro de São Bento é uma das igrejas mais disputadas pra se marcar qualquer coisa. Tá pensando em se casar ali? Melhor agendar a data já no primeiro mês de namoro. Se deixar pra mais tarde, capaz do divórcio e dos três filhos chegarem antes. Afinador de órgãos de tal repartição religiosa, portanto, colocava o Seu Pedro mais ou menos como uma espécie de Flávio Dino litúrgico. Tempos depois, quando tentei estudar música no conservatório Marcelo Tupinambá, é que fui descobrir o quão difícil é deixar todas as notas do sofisticado instrumento em dia. Precisa se formar em faculdade de música, fazer especialização em Física Quântica, residência em Yale e voluntariado com os Médicos sem Fronteiras na África. Fico aqui imaginando que, quando o Seu Pedro chegava à catedral, não ouvia um simples bom-dia. Era um canto gregoriano que os padres recitavam a ele.
Assim como a vida do Seu Pedro, tudo um dia acaba. O secular mosteiro continua lá, firme e forte, no Largo São Bento. Mas a região, desnecessário constatar, está toda degradada. Aquele pedaço do centro de São Paulo parece uma ilha: uma porção de paz e sossego, cercada por mijo, mendigos e policiais por todos os lados. Nem a reabertura do gourmetizado Café Girondino, cobrando quase R$ 20 por seu pingado, foi o suficiente para revitalizar as redondezas.
Depois que o Seu Pedro faleceu, todo dia 25 de dezembro, bem de manhã, por volta das 8 horas, um grupo de jovens vinha ao portão da casa da D. Anita fazer uma seresta natalina. Eram cerca de 6 a 8 rapazes e moças. Não sei se foram alunos do mestre, ou aspirantes a tal, ou se faziam algum tipo de atividade diletante no mosteiro, ou tinham como meta perpetuar a homenagem ao afinador. O fato é que, todo Natal, logo de manhãzinha, eu era agraciado por três ou quatro cantigas, à capela, que saíam melifluamente da garganta daqueles aprendizes. E isso me fazia muito bem.
A D. Anita também faleceu, anos depois, a casa foi vendida, e os jovens nunca mais apareceram. Hoje a data é comemorada ao som de rojões, pancadão e motoqueiros que trafegam com o silenciador do cano de escapamento de seus veículos desabilitado. Onde foi parar a magia do Natal?

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