terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Oscar, a rede social

O cinema não deve acrescentar, deve subtrair. Pelo menos é o que eu penso e espero de um bom filme. Um filme consegue ser definitivo quando eu entro na sala com certezas e saio com dúvidas. Quando ele desconstrói ao invés de revigorar. Filmes que provocam, que incomodam, não são apenas aqueles que tocam em temas polêmicos ou mostram cenas ditas “fortes” sem pudor. São aqueles que, de alguma maneira, me consomem aos poucos com uma certa intensidade e insistência. Como se fossem uma cefaleia. Entro na sala com um organograma mais ou menos encaixadinho e saio dela com o quebra-cabeça todo desmontado. E olha que não é fácil desmontar um quebra-cabeça. Não basta apenas criar um roteiro todo confuso, hermético e onírico, como em A Origem, e sugerir desfechos múltiplos. Às vezes, a complexidade à qual me refiro está na pureza da simplicidade, como é o caso do macaco de olhos vermelhos do Tio Boonme, que Pode Recordar suas Vidas Passadas. O bom cinema não precisa me jogar na cara a minha profunda ignorância em solucionar epílogos mirabolantes. Eu não sou o Sherlock Holmes da Sétima Arte. Claro que o cinema de emboscada pode ser muito bom, às vezes uma obra-prima, como é o caso de boa parte dos trabalhos do Kubrick ou do Lynch. Mas eu me identifico mais com os filmes que me fazem repensar os valores de vida, os conceitos sobre a arte, sobre planos e espaços, sobre a linguagem, sobre o código. Filmes que, ao invés de me edificarem, me mutilam, que fazem me sentir bem pequenininho pra entender esse caótico mundo que nos assola.

Dito isso, volto a reforçar, com uma certa redundância, que a cerimônia do Oscar em nada me atrai ou me empolga. Além da premiação em si ser um porre, de tão demorada e enfadonha que é, já faz alguns anos que me desligo de torcer ou acompanhar a celebração dos favoritos indicados. Primeiro, porque é claro que o Oscar fica muitos passos atrás de outros festivais mais sérios e plurais, como Cannes, Berlim, Veneza. Estes (ainda) conseguem trazer um pouco daquele cinema que eu coloquei no começo do texto, talvez por aceitar melhor o corpo crítico e compor um quadro mais heterogêneo nas fases pré-seletivas. Mas a mediocridade do Oscar está mais em todo esse glamour, essa cafonice de estender tapete vermelho, discutir quem é que tá bem vestido ou não para a entrega da estatueta. Isso não tem nada a ver com cinema. Fora essa babaquice toda, os filmes candidatos ao mais aclamado prêmio mundial até que são razoáveis, bons, assistíveis. O problema deles é que, na maioria dos casos, não são filmes suficientemente fortes para ficar retidos na memória. Passada a euforia, voltam a figurar apenas nos arquivos do imdb.

Creio que a explicação dessa seleção de filmes voláteis, efêmeros, facilmente esquecíveis, esteja no processo como um todo, mas recai principalmente nos nomes. Tirando alguns exemplos raros de diretores queridinhos da América que se inspiram no próprio cinema para fazer sua obra, como Clint Eastwood, os irmãos Coen e mais algum outro caso que não me ocorre no momento, os demais indicam e são indicados pelo coleguismo, tudo na base do QI e da política da boa amizade. O Oscar nada mais é do que uma versão reduzida e estilizada do Facebook, um compêndio cinematográfico de uma rede social. Só falta os integrantes da Academia darem seus votos clicando no botão “curtir”. E os nomes em voga ultimamente têm claros indícios de que frequentaram a mesma escola e foram pré-aprovados pelo mesmo Concílio de Trento: Darren Aronofsky, Christopher Nolan, David Fincher, Sam Mendes, e por aí vai. Assim como a cerimônia, esses diretores abusam de seu cinema-desfile, em que pecar por excesso não é pecado, mas sim uma virtude. Trata-se do novo cinema de firulas, de malabarismos cênicos, câmeras rodopiantes, roteiros vertiginosos. Um tipo de cinema que vangloria o rococó do mise en scéne disfarçado de filme-problema. A Academia tem caído nas armadilhas desses truqueiros e seus filmes afetadinhos, onde tudo parece artisticamente belo e irretocável, onde não há espaço para as impurezas e as imperfeições da arte que imita a vida. Já se foi o tempo do cinema em perspectiva, que usa o próprio cinema como matéria-prima. Hoje parece que todos esses jovens cineastas vieram de uma geração espontânea, com suas regras e seus estilos determinantes. Acabou o cinema-conjunto, pensado como unidade e exercitado como uma somatória. Hoje os filmes que recebem os holofotes do Oscar (até talvez por uma questão de facilitar a premiação) são aqueles divididinhos, filmes pensados e realizados por camadas, onde fica fácil enxergar quando termina o trabalho de um profissional e começa o do outro. Essa celebração por categorias, se não chega a ser criminosa, no mínimo quebra o paradigma estrutural do cinema no que diz respeito à sua coerência. Um ator não está ali nas telas necessariamente para traduzir as intenções do diretor, que conduz sua câmera a serviço de uma ideia. Para um ator levar pra casa o prêmio, ele tem que se entregar fisicamente ao papel, mudar a voz, perder vários quilos, quebrar a unha do dedo do pé, esborcinar-se para exibir a dificuldade e a sofreguidão de estar em cena, ao invés de simplesmente... estar em cena. Entre outras fragilidades, o Oscar contempla meramente o resultado estético, o imediatismo do impacto. Valores menos contemplativos e mais substanciais dificilmente são colocados em questão. Isso pra mim não é simplicidade, é simplismo. Filmes candidatos ao Oscar são bonitinhos, mas ordinários. Nada me acrescentam. E pior: nada me subtraem.

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