quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Verão dos infernos

O verão é legal. O verão revitaliza, traz novas energias. As pessoas emanam felicidade, descontração e alto-astral nessa época do ano. Verão traz a exuberância das cores, das formas, dos corpos. O verão está diretamente ligado à sexualidade do povo tropical. É a melhor tradução imagética do Brasil. Metáforas poéticas associam o raiar do sol a um estado voluptuoso de alegria. Fabricantes de bronzeadores e de cerveja riem à toa com o expressivo aumento do consumo de suas marcas. Enfim, historicamente, o verão sempre esteve associado a coisas boas.

Mas os acontecimentos dos últimos verões fizeram a brincadeira perder a graça. Junto com a sua beleza alaranjada, o verão traz também o desabastecimento, as chuvas fortes e todas as consequências e desgraças desse caldo azedo. E não se trata de um fenômeno-surpresa não, como alguns alegam. Chuvas torrenciais têm dia e hora certa para acontecer. Uma série de fatores contribui para que esses espasmos meteorológicos assumam dimensões tão grandes e desastrosas. Por uma questão de comodidade, autoridades políticas alegam que se trata de acontecimentos anômalos, atípicos, cuja rápida propagação não permite medidas prévias de contenção das águas. Por causa do desequilíbrio ecológico, talvez a intensidade pluviométrica recente até justifique tal proposição. Mas é vergonhoso o país inteiro assistir a esse tipo de depoimento que dá a entender que os executivos do poder estejam de mãos atadas. Estamos vivendo isso tudo não somente por causa da fúria divina, mas também devido ao descaso em realizar obras de emergência que não dão votos, como a construção e manutenção de piscinões, um mutirão sério e efetivo de limpeza de bueiros, maior rigor na fiscalização de construções clandestinas em áreas de risco e uma série de outras medidas que poderiam atenuar os efeitos dramáticos dessa calamidade pública. Mas não. O jogo de empurra-empurra continua firme e forte. A culpa é histórica, cidades que cresceram sem planejamento. O progresso é inimigo das manifestações da natureza. A culpa é das pessoas que jogam lixo na rua e de sua falta de conscientização ambiental. A culpa é nossa. E devemos pagar caro por essa penitência.

Ver esse pandemônio todo na TV e a sensação de impotência da população mais frágil e vulnerável a essas intempéries causa uma sensação mista de comoção e indignação. Mas a raiva aumenta quando a chuva e o dar-de-ombros atinge o nosso curral. Só nessa temporada, chamei o técnico de informática três vezes para trocar equipamentos que pifaram por causa de um sistema energético igualmente pifado e falido. O governo prometeu acabar com o apagão e colocar o país na era da modernidade, mas tudo o que consegue nos oferecer é uma energia podre e suja. Em pleno Século 21 somos obrigados a nos cercar de estabilizadores e a tirar e colocar fios na tomada como baratas tontas. A cada dia que passa, fazemos figas para que nenhum mal maior aconteça nos nossos doces lares. Como se estivéssemos nas trevas da Idade Média, época em que se acreditava que o mundo ia acabar num dilúvio. Na segunda-feira passada, talvez o pior dos dias, fatídica data em que o dia virou noite, caiu uma árvore numa travessa da minha rua (é a segunda árvore que cai nesses últimos meses), bloqueando o trânsito. Soube depois que essa foi apenas uma das 180 ocorrências de caso semelhante, isso sem contar as centenas de milhares de alertas sobre semáforos mudos ou insandecidos. Chega! Não dá mais para conviver com esse caos. Como se não bastasse, questão de minutos após o desabamento de tal copa fiquei sabendo que uma vizinha nossa perdeu todos os seus bens (geladeira, móveis, colchões, computador, tudo) por causa da inundação em sua sala. Perdeu em minutos o que demorou a vida inteira para construir. Os pingos d’água caindo sobre a cara desolada da vizinha, cercada pela solidariedade dos outros vizinhos, foi uma cena indescritível. Um gesto que simboliza toda a vergonha da incompetência do engenheiro das obras da casa ao lado e da omissão da Prefeitura. Sei que essa angústia minha parece redundante e inócua para resolver os problemas da cidade, mas escrevo mais por uma questão de desabafo. A água está batendo na nossa bunda. Do jeito que as coisas vão indo empurradas com a barriga de esquistossomose, é bem capaz que no verão do ano que vem, o apocalíptico ano de 2012, pouco antes de o mundo acabar, a gente consiga fazer nossa última refeição de modo digno, cantando e dançando sobre a balsa.

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