quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Estupro à democracia

“Sabe qual é o cúmulo da mira? Transar com uma grávida e acertar o ânus do feto”. Essa piada eu conheço faz muito tempo. E já ouvi algumas vezes, sem qualquer tipo de represália ou algum esboço de reação adversa. É uma anedota típica de roda de amigos. Um pouco indecente e de gosto duvidoso talvez, mas não se trata de um texto imoral ou proveniente de uma visão de mundo torpe e abjeta. Pra você ter uma ideia, foi MINHA MÃE quem me contou essa piada pela primeira vez. Ou seja, não é propriedade restrita e limitada dos comediantes mais, por assim dizer, transgressores, malditos ou simplesmente boca-suja.

Recentemente, o comediante e apresentador Rafinha Bastos fez uma piada nessa linha ao vivo, durante o programa CQC, e o alvo foi a cantora Wanessa Camargo. Embora com palavras mais polidas do que a piada original existente, o tom “irreverente” foi mais ou menos o mesmo. Mal sabia a pessoa mais influente do Twitter que estaria mexendo num vespeiro. A cantora se ofendeu. Seu marido, empresário de uma agência, e Ronaldo Fenômeno, amigo do empresário e garoto-propaganda de uma operadora de telefonia móvel, também se ofenderam. Marco Luque, companheiro de Rafinha no programa e também garoto-propaganda da mesma operadora do jogador, repudiou o comentário infeliz. Resultado: cedendo às pressões, a Rede Bandeirantes de televisão, numa atitude hipócrita e covarde, decidiu afastar o apresentador por tempo indeterminado. Bastou uma ligação telefônica (de Claro para Claro?). Ele está de molho, está de quarentena, aguardando um parecer de uma escala maior do poder.

Junto com outras notícias que enfatizam a desgraça, como as rebeliões na Síria, a crise na Europa, a alta do dólar, a soltura do atropelador assassino e seu carro de luxo e as contínuas greves, essa também foi uma das mais comentadas. Rafinha, de ídolo dos nerds, passou para o banco dos réus deste mesmo eleitorado. De capa da Info, da RG ou da Rolling Stone, que enalteceram seus atributos físicos e intelectuais, passou a figurar, em questão de semanas, na capa da Vejinha, sob a alcunha de “O rei da baixaria”. Sua piada até pode ter sido um soco no estômago, um chute no ventre da famosa prenha. Mas é certo dizer que Rafinha foi nocauteado, sem nenhuma chance de se defender. Quem saiu perdendo? Ora, todos nós. Esse comentário apressado teria sido uma ótima oportunidade para a sociedade promover debates sobre a ética do humor e sobre seus limites e critérios. O apresentador deveria, no mínimo, ter um espaço condizente com seu maldizer para se retratar publicamente. Que nada. Vivemos no país da censura velada. A atitude da emissora, evidentemente, reflete muito mais a obediência servil a um jogo de interesses de quem tem influências na mídia do que a punição por uma falta de decoro propriamente dita.

Assim que soube da notícia do afastamento dele, no domingo à noite, publiquei a matéria no meu perfil do Facebook. As primeiras reações, talvez as mais imediatas e menos elaboradas, foram de amigos meus (prefiro não cometer a indelicadeza de citar nomes) pelos quais exerço uma profunda e sincera admiração. Pessoas com uma invejável erudição, clareza de raciocínio e capacidade de organizar ideias. Amigos de longa data, que me concedem a liberdade e me deixam suficientemente confortável para eu manifestar opiniões contrárias quando for o caso, se for o caso. Não quero fazer generalizações precipitadas, mas, coincidentemente, ambos regem uma preferência ideológica mais de acordo com o pensamento de esquerda, se é que isso ainda existe com a mesma coerência dos tempos de liberdade e luta. Talvez numa resposta movida mais pela urgência e pela emoção do que pela razão (talvez!), a primeira reação que vejo é a de que, na opinião deste cordial colega, todos os integrantes do CQC poderiam ser expulsos para o programa acabar de vez, e que ele (o CQC) não faria a mínima falta. Não foram exatamente essas as palavras, mas o sentido foi algo assim. Bom, é notória a precária qualidade dos programas de TV, isso ocorre faz muito tempo. Mesmo eu sendo assinante de TV a cabo, a quantidade de programas que vejo não passa de meia dúzia. Da mesma maneira que meu amigo se expressa, eu também não sinto a mínima falta dos humorísticos rasos, dos reality shows, das novelas açucaradas, das mesas-redondas, dos programas matinais, dos noticiários sensacionalistas, dos seriados enlatados. Mas, no meu entender, não vejo que a solução seja a eliminação pura, simples e rápida dessas porcarias que emanam dos eletrodos dos tubos magnéticos e empesteiam nossos indefesos neurônios. Aniquilar a televisão atual com um tiro letal de bazuca pode até erradicar seus efeitos nocivos, mas dificilmente irá chegar à causa do problema. E, mesmo que as intenções do inofensivo comentário madrugal de um post sejam apenas fazer rir ou polemizar sem um grande contexto, elas revelam no fundo uma súbita vontade tirana. Outro comentário que recebi, de uma amiga pela qual nutro uma admiração maior do que nossas afinidades, dizia que, dada a quantidade de merda que o Rafinha fala, a conta até que saiu barato. Algo nessa linha. Ou seja, seu temporário período de carceragem até que é um castigo justo pelo mal que ele faz à humanidade. Respeito ambas as opiniões e tenho certeza de que existe um embasamento lógico e elaborado por trás delas. Mas não posso deixar de ficar indignado ao perceber que o confinamento, a reclusão, a iconoclastia pura e simples, tenham vindo de pessoas com posições ideológicas que, historicamente, derramaram sangue pela democracia e pela liberdade de expressão.

Outro texto que me chamou a atenção, nesse mesmo grupo de comentários do post em questão, foi o link do blog da professora-doutora Lola Aronovich, Escreva Lola Escreva, intitulado “Politicamente incorreto não é transgressor, Rafinha”. No texto, a professora defende o uso do politicamente correto, algo condenado por quem se diz subversivo. A professora tem razão em alguns aspectos do artigo. Não podemos tratar o estupro, por exemplo, um assunto sério e traumático, um crime hediondo, com a leviandade e a expiação de culpa de quem simplesmente conta uma piada e sai andando. Lola cutuca na ferida ao apontar um paradoxo: se o humorista diz que fala “as verdades do cotidiano”, como é que ele pode rapidamente se justificar de uma polêmica saia-justa alegando que o que falou “é apenas uma brincadeira”, encerrando a questão e colocando o assunto no nível utópico e intangível da inverossimilhança? E mais: se a professora optou por trocar o “aleijado” pelo “portador de deficiência física”, o problema é dela. Ou o “mongolóide” pelo “possuidor de síndrome congênita da Trissomia do Par 21”. Ou, ainda, o “burro” pelo “cidadão dotado de reduzidas e obtusas faculdades mentais”. A professora tem plena consciência de que, ao substituir palavras que venham a ter uma conotação pejorativa, possa se distanciar do repertório popular. Não vejo problema algum, é um direito soberano e irrevogável. E se ela acha mais conveniente substituir o “humor negro” pelo “humor afro-descendente”, fique à vontade. Entretanto, como ela bem sabe, o humor ácido, corrosivo e sarcástico não vive às custas dessa boa educação no palavreado. E o que me incomodou no artigo foi a maneira como ela ataca alguns comediantes do CQC, principalmente os mais atingidos pelo mal-estar que geram com seus comentários. De cara, a blogueira confessa que pouco conhece esses personagens. E, ao que me parece, não faz questão alguma de conhecê-los, embora sustente suas críticas a eles mesmo navegando nesse perigoso vazio. No decorrer do texto, ela trata essas figuras públicas como “um tal de Danilo” e, mais pra frente, “Rafinhas e afins”. Não é a ironia do desprezo que dará sustentação ao seu ponto de vista. Eles não são pessoas quaisquer, surgidas no meio de diversos caça-talentos cuja razão social é a falcatrua. Embora o CQC vem demonstrando sinais de desgaste, isso é notório, é bom lembrar que o programa foi um dos pioneiros a invadir gabinetes de deputados, a exigir satisfações dos representantes do povo que ignoram o povo. Num determinado contexto histórico, político e televisivo, o CQC inovou. E recrutou comediantes da melhor espécie. Hoje o programa estampa um tipo de humor osteoporótico, visivelmente corroído, que trocou a irreverência pela caricatura de si próprio. Mas não é por isso que Lola pode afirmar que o humor stand-up é tudo uma coisa só, um balaio de gatos oriundos de uma geração espontânea, como se os “afins” do Rafinha fossem um bando de cordeiros seguindo seu pastor. A única “afinidade” que tenho com o Rafinha é a de subir aos palcos e dar a cara para bater. Entre outras coisas, estou me iniciando no stand-up, nem sei ainda se por hobby, vocação ou como um plano de previdência. Estou para o stand-up, metaforicamente falando, assim como o feto da Wanessa Camergo está para o mundo. E não pretendo, em hipótese alguma, acomodar minha comédia na zona de conforto do clichê ou das saídas fáceis e situações genéricas. Quero, e vou lutar pra isso, me destacar no mercado pela diferenciação. E ficaria muito ofendido se alguém me tratasse como um “afim” a mais de outro comediante, quem quer que seja. Claro que existem tácnicas comuns e estilos que inspiram gerações. Mas Lola dá a entender que os humoristas se reúnem periodicamente, como se estivessem num Concílio de Trento, e lá decidem as piadas que todos vão contar, com os mesmos recursos e as mesmas doses de preconceito.

O Brasil é um país emergente. Sediar uma Copa do Mundo, emprestar dinheiro pra Europa, fazem do Brasil um país emergente. E, da mesma forma, o povo brasileiro também é emergente. O Brasil hoje é um país que “se acha”, e isso, embora refresque nossa auto-estima, cria um problema sério para o desenvolvimento. Somos relativamente estáveis no bolso, mas continuamos pobres de espírito. Ainda temos muito o que aprender no que diz respeito à liberdade de expressão, à luta por direitos, ao debate, ao esclarecimento. O humor stand-up não deixa de ser, ainda em última instância, a nossa forma orgânica de dialogar com o mundo e com esse caos, nem que seja ¡à base do riso. É por meio das mais absurdas mentiras que chegamos às mais contundentes verdades. E quem conhece o Danilo (Gentili) sabe que ele já fez stand-up falando sobre o Sarney e a censura. E quem conhece o Rafinha sabe também que ele não é um moleque intempestivo e inconsequente. Ele já gravou uma série de episódios em que testa piadas novas e pede conselhos aos amigos de profissão. Como se fosse um raio-X, ele mostra no vídeo os bastidores da comédia, um constante exercício de tentativa e erro. É essa a verdadeira função do comediante. Socar, socar, socar. Cair, levantar-se. Pedir desculpas pro adversário? Quem sabe. Mas eu tô meio cansado das lutas mornas, das piadas voláteis, das generalizações. E fico muito triste com a resolução que deram ao caso Rafinha. Já que o Brasil pode virar um credor em relação aos países europeus, poderia pelo menos pegar como moeda de troca a ousadia da Holanda, um país que coloca em prática questões avançadas pra ver depois a reação da sociedade e, se for o caso, retrair um pouco. É desse tipo de irreverência, de preparo e de amadurecimento que precisamos. Podemos até ser a bola da vez mas, em relação à comédia stand-up, ainda somos da época e dos costumes dos talibãs.

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