quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Leon e a Mostra

A matéria da Daniela Thomas publicada na Ilustrada do dia 17 de outubro é uma merecida homenagem ao fundador da Mostra de Cinema de São Paulo, Leon Cakoff. Um tributo necessário a quem foi um herói da resistência: lutou contra a censura, a ditadura e, principalmente, ao pensar pequeno da maioria dos distribuidores nacionais, acomodados em suas zonas de conforto para lançar somente filmes mais acessíveis e pouco questionadores, como as aventuras e ações em 3D, as insossas comédias românticas, e por aí vai. Daniela deve ter seus motivos pessoais, talvez tenha nutrido uma relação muito próxima e afetiva com Cakoff. Mas não creio que o óbito do mentor da Mostra seja argumento suficiente para um artigo tão hiperbólico, quase fanático, construído e enaltecido com a descrição de um empurra-empurra mas com a louvação monumental de um obelisco. Prefiro deixar registrado um epitáfio mais justo, passionalmente mais comedido como é de minha natureza, mais calcado na importância da Mostra para a história da Sétima Arte em São Paulo e na qualidade de seus pré-lançamentos e suas retrospectivas.

Como alguns poucos sabem, minha mãe fez uma espécie de voto de protesto e deixou de frequentar a Mostra, questão de uns 3 anos pra cá. Por mais compreensível e justificável que fosse o motivo alegado pelos organizadores, a atitude prepotente de coibir sua presença num determinado tipo de sessão, praticada por um imberbe e incompetente assecla, criou um mal-estar sem precedentes para quem tanto apoiou a causa e ajudou a divulgar o evento. Num misto de adesão ao movimento, aliada à minha falta de tempo, também diminuí consideravelmente minha presença nas sessões da Mostra. Mas não é o momento mais adequado para nos lembrarmos de coisas ruins. A Mostra foi um marco fundamental na quebra de paradigmas em relação às escolhas de filmes a ser lançados. Melhor reter na memória o autógrafo que minha mãe guarda do então garoto Quentin Tarantino, o tagarela hiperativo que carregava debaixo do braço o seu longa de estreia, Cães de Aluguel. Ou o encontro com Alexander Sokurov. Ou o momento em que ela subiu ao palco e entregou o troféu a Marco Tulio Giordana por seu filme Os Cem Passos. Coisas assim. Minha mãe cansou de dar entrevistas e aparecer em alguns veículos de comunicação, mas infelizmente a abordagem do fato, na maioria dos casos, se deu pelo aspecto sensacionalista da cisa. Um equívoco, a meu ver. O motivo da minha mãe ver os filmes da Mostra não é aquela brejeirice de escapar dos afazeres domésticos e se esconder em uma sala de cinema, como se estivesse cabulando aula. Pelo contrário. O que leva minha mãe aos filmes é o encontro. É poder ver, num único dia e em um único lugar, as culturas, as línguas, os costumes e os traços complexos e multifacetários do ser humano. E bons exemplos nunca faltaram. É justo lembrar, a Mostra nos trouxe o prazer de desvirginar Haneke, Kiarostami, Dardenne, Assayas, Gitai, entre tantos outros. Contudo, coincidência ou não, pelos fatores acima enumerados, mais a grandiosidade que o evento adquiriu, a Mostra aos poucos foi deixando de ter a minha cara. Perdi completamente aquela ansiedade, aquele frisson incontido pelos tão aguardados 20 dias de um estado simultâneo de deleite e fadiga. Quanto maior ficou, mais visível ficaram seus sinais de desgaste. No decorrer dos anos a Mostra, é notório dizer, infelizmente sofreu muito com sua desorganização, com suas falhas técnicas, atrasos, retenções na alfândega, cancelamentos, etc. Isso sem falar na péssima qualidade de exibição de alguns filmes, principalmente aqueles que rodam os festivais do mundo inteiro e nos chegam em uma tosca versão “demo”. E, quando um dia foi dito, em coletiva de imprensa, que o público pagante representava uma porcentagem mínima para arcar com os custos totais do festival, ficou claro esse distanciamento cada vez mais acirrado dos cinéfilos e uma preocupação ainda maior em agradar a interesses de patrocinadores e mecenas. A Mostra foi perdendo seu cromossomo genético da vanguarda, do garimpo, da descoberta do inédito. Deu-se a entender, com a calvície e o passar dos anos, que o contestador Leon entrou no sistema. Um sistema mais centro-esquerda, cinematograficamente falando, mas ainda assim um sistema, regido por regras e interesses próprios. O então rebelde da tirania promovida pelo AI-5 passou a ser meramente um viabilizador cultural, um encurtador de distâncias, um mediador de um debate que deixou de existir.

Quer queira quer não, a Mostra estabeleceu um pacto com a cidade, com o circuito dito alternativo, com o cinéfilo paulistano. E, como todo pacto, existe a solidariedade na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Não deu para ficar incólume ao texto do Cakoff publicado na Folha no começo do ano, um artigo com cara de despedida, uma espécie de testamento jornalístico-cultural. Ali, o organizador tornou pública sua doença, sabiamente não dissociada da Mostra. Difícil dizer se este câncer foi uma disfunção citológica, uma vontade divina ou a somatização do fardo de se carregar nas costas o maior evento cinematográfico de São Paulo.

Dada a importância deste evento, seus realizadores foram se tornando não menos importantes. Natural, até. Negociar com investidores, posar ao lado de autoridades civis, dar entrevistas, tudo isso ajudou a inflar egos na proporção de suas responsabilidades. Em situações públicas, por exemplo as coletivas de imprensa, a aparição midiática do casal era o reflaxo do brilho e do glamour que o cinema proporciona. Leon e Renata surgiam minutos antes da cerimônia se iniciar, algo que tomava as mesmas dimensões do tapete vermelho do Oscar. Entretanto, por uma obra do destino, na última coletiva, a esposa de Leon e coorganizadora da Mostra, Renata de Almeida, esteve ali, próxima aos jornalistas, durante quase todo o receptivo. Naquele dia, Leon já estava internado e, por conta desse infortúnio, a Renata estava visivelmente abalada, ameaçando o tempo todo despejar sua primeira lágrima em virtude de sua aflição e ansiedade. É a primeira vez em que ela, depois de muitos anos, comanda sozinha este barco. Bem no ano em que o Brasil tem uma mulher à sua frente de governo. E, talvez por uma soma de fatores, senti a Renata muito mais próxima, mais descalça, mais orgânica. Os agradecimentos a toda a equipe foram sinceros e não protocolares. E, provavelmente devido a toda essa vulnerabilidade, a essa fragilidade humana, ouso arriscar um palpite de que a Mostra tem tudo pra ser uma das melhores dos últimos anos. Foi falado que, por uma decisão ainda do Cakoff, que a Mostra iria abandonar um pouco seu gigantismo megalomaníaco. Isso, em termos práticos, diz muita coisa. Afinal, é mais fácil domar 300 leões do que quase meio milhar deles. O risco da coisa fugir do controle cai um pouco. Com um número mais restrito e a opção de se exibir somente filmes inéditos (tirando as retrospectivas), o cinéfilo pode encontrar mais tempo para ver, digerir, depurar e reter os filmes. Que é a principal característica de um festival. Este ano, a Mostra tá mais para um menu degustação do que para um rodízio, o que é melhor e mais saboroso para todos. Mas não é só por isso. Retraindo-se a quantidade de películas e estipulando-se uma seleção mais criteriosa de seus títulos, a Mostra encontra maiores condições de resgatar seus valores mais antigos e mais intrínsecos, preteridos por essa pressa efêmera de correr atrás do próprio rabo. Seria um saudável paradoxo ver nessa Mostra o diálogo com o mundo atual, em sintonia com a reciclagem retrô de posturas das edições passadas. Talvez tenha sido esse o maior legado do Cakoff: fazer com que voltemos a experimentar os filmes na tentativa de descobrirmos a nós mesmos, como fazíamos no começo. O resto é grandiloquência panfletária.

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