terça-feira, 1 de novembro de 2011

35ª Mostra SP - Cut, de Amir Naderi (Japão, 2011)

Arte em carne viva

Embarcar na experiência de “Cut” é quase envolver-se em um ritual primitivo na busca pela essência. Afinal, o que é a metalinguagem senão um exercício ao encontro uterino de sua própria estrutura para a reflexão de questões maiores? Esse é o intróito do filme. Planos fechados, longos, sem diálogos, com raríssimas intervenções sonoras do ambiente. Pode-se dizer que se trata de uma ruptura aos padrões acelerados, nos takes e na ilha de edição, dos blockbusters de hoje. Cenas e planos que trazem a referência da nouvelle vague e dos discípulos deste movimento. Planos inertes de visitas aos túmulos dos cineastas consagrados, como Ozu e Kurosawa. É o rotulado “cinema de arte” falando sobre o próprio “cinema de arte”. Logo em seguida, vem a apologia. Um discurso inflamado do protagonista, com seu megafone, fugindo da polícia, escondendo-se nos escombros de prédios em ruínas de uma metrópole decadente do Japão. O personagem alardeia para os quatro cantos que o cinema atual se rendeu aos modelos comerciais de produção, que não existe mais cinema de autor, que cinema hoje é somente entretenimento, que a arte se rendeu aos mecanismos das bilheterias, entre outras frases prontas. E, para combater esse mercantilismo no qual a arte se transformou, exibe cópias de seu acervo em espaços alternativos, como sacadas de prédios, para os cinéfilos da resistência. Essa é a verdadeira essência da contestação de “Cut”. Tratar o cinema como uma obra itinerante, viva, orgânica, que invade espaços, dribla o poder, encaixa-se nas ranhuras dos arranha-céus para dialogar com seu público. Cinema que respira, cinema que transborda.

Num segundo momento, o filme dá uma reviravolta. A máfia japonesa sequestra o idealista para fazer com que ele acerte uma dívida deixada pelo seu irmão antes de ser assassinado pelos capangas da Yakuza. Sem recursos e sem alternativas, o personagem se vê obrigado a juntar renda num prazo mínimo para saldar esse déficit. Dá a cara a bater, ou melhor, vende ela. Rifa seu corpo para que os mafiosos possam dar-lhe socos, como se o banheiro da espelunca fosse a quermesse da pancadaria, com sangue no lugar da groselha em copinhos ou da barraca de beijos. É a roupagem “lado B” dos filmes igualmente vangloriados pelos cinéfilos, na linha de Takashi Miike. Nesse aspecto, guarda semelhanças com “Tokyo Porrada” por transformar a violência em espetáculo. “Cut” é a arte do corpo, o close nos limites entre a beleza da contemplação de Ozu e a fragilidade dos ossos de Shin'ya Tsukamoto. E esse fragmento do filme é que abre o campo semântico do título. Pode se referir tanto aos cortes secos da película, ao enxugamento dos excessos, quanto as feridas estampadas da carne.

Ainda que possa trazer esse respiro ofegante em prol da arte, “Cut” soa mais como um filme ingênuo e panfletário. Tarantino, por exemplo, sai-se bem melhor quando utiliza as mesmas referências na própria imagem e não no discurso. “Cut” conduz com competência o espectador na mesma paixão pelo cinema, mas isso é causa ganha. Há uma sequência interessante em que aparecem alguns nomes de filmes e de diretores consagrados, fora da diegese das cenas de porrada. Uma espécie de lista do diretor dos 100 filmes a se assistir antes de morrer. Sim, o cinema do passado, dos letterings, está sucumbindo perante os socos das imagens do cinema-violência atual. Mas essa relação doentia de paixão está muito mais presente nas intenções do que em seu organismo.

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