terça-feira, 17 de setembro de 2019

Anedóticos Anônimos


- Boa noite. Meu nome é Érico...
(Saudação do grupo em coro uníssono) – Ooooi, Érico...
- Tenho 51 anos, sou solteiro... e faz 2 semanas que eu não conto uma piada.
Aplausos coletivos.
(Moderador do grupo) – Quer falar sobre isso? Conta pra gente sua história. No seu tempo.
- No começo eu não gostava de piada. Nem um pouco. Quando vinha aquele cara em festa... aquele tiozinho que você só encontra em casamento e enterro, sabe? Quando começava a contar piada de português, de papagaio, eu fingia que ia pegar uma bebida e caía fora. Pra contar piada eu era muito ruim também. Esquecia o final, começava a rir antes de terminar de contar, repetia o final, dava uma explicação básica do final... como se a pessoa não fosse capaz de entender...
Breve pausa para uma tossida. Prossigo.
- Até que um amigo meu me chamou pra assistir a um show de stand-up. Ele ganhou ingresso VIP e não tinha ninguém com quem ir. No começo é sempre assim, né? A pessoa te introduz no mundo do crime pra você pegar o gostinho pela coisa. Eu até tentei escapar, inventei uma desculpa esfarrapada, falei que não podia perder o último capítulo da novela... não colou. Fomos até o local, um lugar com fachada de bar, numa rua bem escura, sabe? Quando a gente desceu do carro e o segurança da casa revistou a gente, pensei: “Ih, fodeu”. Mas de boa. Entramos na tranquilidade. Eu sinceramente não fui lá pra rir não. Não tava a fim. Mas, cara... quando começou o show... eu quase me mijei nas calças. Foi muuuito bom. Ducaralho.
(Moderador) – É, de vez em quando a vida traz surpresas...
- E aí eu comecei a ter vontade de ir a outros shows. Só que dessa vez eu tive de pagar, né? Sempre assim. A primeira dose de humor vem de mão beijada. Depois, você tem que batalhar. Fui ao Comedians. Mó grana. Fui ao Renaissance, mais caro ainda. E como lá o show só começa à meia-noite, tive de voltar de Uber. Bota mais dinheiro nessa brincadeira. Fui num show aqui, outro ali, e não parei mais.
(Moderador) – É um paradoxo, certo? Primeiro você odiava piada, depois passou a amar o humor. Como você lidou com isso?
- Não sei explicar. Foi algo que me pegou sem eu estar preparado. Coisa de amigo que acaba te influenciando. E você não quer se ver fora da roda. No começo, distância total. Mas aquilo foi me viciando. E a grana foi acabando. Eu sempre quis fazer as coisas honestamente, pra manter a dignidade. Mas chegou uma hora que não dava mais. A vontade de ver os caras arrebentando no palco era incontrolável. A primeira vez que peguei uma grana emprestada... quer dizer, não foi exatamente um empréstimo... mas eu prometo devolver... eu vi a bolsa da minha mãe aberta e peguei umas notas. Usei a grana pra ir ao show do Danilo Gentili. Mas não parou aí. Vendi a bicicleta do meu irmão pra ir ao show do Thiago Ventura. E foi piorando. Até que um dia usei uma arma de brinquedo, quebrei o vidro do carro de uma senhora parada no farol, peguei a bolsa, o celular, a corrente pra comprar ingresso pro show do Whindersson Nunes. Eu estava no fundo do poço. E o pior...
Começo a chorar convulsivamente. Paro. Respiro fundo. Volto a falar.
- O pior de tudo é que eu nem gosto do Whindersson Nunes. Acho ele um mala, só faz piada de mau gosto, sem graça....
- ... Continuando... além de ouvir, eu comecei a gostar de contar piada. Fiz curso e tal. No começo era até saudável. Só que com o tempo eu peguei uma obsessão pela coisa. E ficou doentio o negócio. Só pensava em criar piada, 24 horas por dia. Um vício mesmo. Setup e punchline, setup e punchline, o tempo todo... teve um dia que meu chefe me demitiu porque eu fiz uma piada usando a regra de 3 com ele. Briga de bar, por exemplo. Levei uma porrada porque fiz um call back com um cliente.
Pausa. Soluços. Volto a dar meu relato.
- Eu até pegava leve. Piadoca de salão, sabe? É são-paulino gay, japonês com pinto pequeno, loira burra, judeu mão-de-vaca... Mas, conforme fui pegando gosto, parti para temas mais pesados. Comecei a fazer piada de preto, de cadeirante, de mulher grávida, de doente mental, de fanhoso, de gordo... até fiz uma piada com a Madre Teresa de Calcutá, acredita?
(Moderador) – E como sua família e seus amigos encararam isso?
- A maioria não gostou. Eu comecei a ficar chato, inconveniente. Estava alucinado, fazendo piada infame. Amigos do Facebook me bloquearam. A família começou a me evitar, só porque eu fazia piada com o Bolsonaro. Parentes distantes me silenciaram no Whats. Colegas de trabalho me botaram no modo soneca. Quando fui ver, estava sozinho, totalmente sozinho...
Volto a chorar. Paro.
- Eu estava tão transtornado que fazia piada com qualquer coisa pra saciar meu vício. Quando não vinha uma puta sacada, uma reversão cômica, ia na base do trocadilho mesmo. Pavê ou pacumê, setembro chove, Wim Wenders e aprendenders... o que viesse pela frente.
(Moderador) – E como você fez pra sair desse buraco negro?
- Força de vontade. Fiz uma viagem interior. Uma busca pelo autoconhecimento. E comecei a orar bastante. Quando vinha a tentação, eu logo pensava em alguma coisa trágica pro pensamento fugir. Acidente, desmatamento, incêndio, volta da CPMF, atual ministério... Hoje sou uma pessoa melhor. Ainda não estou curado. Mas sei que estou no caminho certo. Piada, nunca mais.


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