sábado, 8 de fevereiro de 2020

A maldição das senhas

Para pra pensar. Se bobear, você deve ter no mínimo umas 257 senhas rodeando sua vida. Quem um dia falou que a internet é um universo livre merece ir pra forca. Nos dias atuais, somos obrigados a andar com uma quantidade de chaves de acesso que nos faz parecer carcereiros de presídio de segurança máxima.

Vamos tentar numerar algumas. Você tem sua senha do cartão do banco. A senha do internet banking, que deve ser diferente do cartão. A senha do aplicativo do banco, que deve ser diferente de ambas. Do cartão do vale-alimentação. A do seu e-mail principal. Do e-mail alternativo. Do e-mail que você só criou pra poder participar de promoção. Do Facebook. Do Tinder. Do WhatsApp quando você acessa de outro dispositivo, pra não cair no golpe em que o Sérgio Moro caiu. Do site da Prefeitura. Da rede interna da empresa onde você trabalha. Estou tão acostumado a digitar senha pra tudo que teve um dia em que eu fui no prédio de um amigo meu e, quando fui teclar o número do apartamento, comecei a digitar uma dessas senhas.

Antes de mais nada, queria falar do primo escroto da senha: o login. Eu ainda tenho sorte de ter nascido com um nome relativamente incomum. Abençoados eternamente sejam meus pais. Mas e no caso da Maria? Do Paulo? Tiago? Rodrigo? A Tatiana, por exemplo, nunca será Tatiana pro resto da vida. Ela é Tatiana1984 no Gmail, t.bernardes no escritório, Tati_barraqueira no Twitter, Tati_Fogosa no Tinder, @thaaatyyy no Instagram e no Linkedin ela nem faz mais ideia porque não entra lá desde 2006. Perdemos nosso RG no mundo virtual. Nosso DNA é composto por uma sequência aleatória de letras e números que nunca ninguém ousou imaginar. Para termos acesso ao nosso saldo bancário, ao e-mail com os resultados do exame ou simplesmente para podermos participar de uma promoção da Nestlé, precisamos ter a criatividade do Jacson Pollock num universo surreal do Salvador Dalí.

Cadastro então, nem se fala. Aquilo é um cu. Se eu pudesse, cortava a mão do programador que desenvolve essa jossa. Depois de enforcar o internet livre. Antes de começar a preencher um formulário, desmarque todos os seus compromissos. Tipo, deixe de ir ao cinema, pois você vai perder a sessão. Estou me referindo ao Irlandês, ou qualquer filme do Lav Diaz. Meu pessimismo é tão grande que antes de começar eu já adivinho que a qualquer hora vai aparecer na tela uma frase em vermelho alegando que eu esqueci ou escrevi errado alguma coisa. E eu acerto SEMPRE. O cadastro não toma partido; é apolítico. Ele invade a esquerda, a direita e o centrão da tela. Existem aqueles campos obrigatórios, marcados com asterisco, que correspondem a mais ou menos 99,7% do formulário. Nome, e-mail, celular, telefone alternativo, RG, CPF, endereço, data de nascimento, senha, confirmação da senha, etc. E aí vem o único campo com preenchimento facultativo, "deixe aqui seu comentário". Que é o único que dá vontade de escrever: VÁ PRA PUTA QUE O PARIU. Depois você precisa ticar o quadradinho "li e concordo com os termos do Regulamento". Só que ninguém lê um Regulamento de 48 artigos, 153 incisos e um único Parágrafo Único. Depois você deve ticar outro quadradinho dizendo "eu não sou um robô". Às vezes pode dar errado. Aí você procura na tela algum lugar em que possa dizer "juro que não sou um robô". Pode dar errado de novo. Nessa hora, mentalmente você digitaria com seus neurônios "JURO POR DEUS, PELA MORTE DA MINHA MÃE E POR TUDO O QUE É MAIS SAGRADO NESSA TERRA QUE EU NÃO SOU UM ROBÔ. E VÁ PRA PUTA QUE O PARIU, ANTES QUE EU ME ESQUEÇA". Depois, você precisa decifrar umas letras tortas, que parecem ter sido escritas pelo Zeca Pagodinho depois de sua oitava garrafa de cerveja, coladas entre si como se fossem sardinhas enlatadas, e ainda mergulhadas num aquário de pontinhos pretos. Passada a fase Sherlock Holmes para você provar que você é você mesmo, vem um tipo de um quebra-cabeça em que você precisa arrastar imagens esquartejadas e colocá-las no local exato da tela. Se errar, deve voltar a preencher o cadastro desde o início.

Retornemos às senhas. Elas foram criadas, pelo que sempre nos informam, para garantir a nossa segurança. As instituições públicas e privadas incutiram na nossa mente que existe um Dick Vigarista de tocaia, junto com seu cachorro Mutley, de binóculo observando lá de longe tudo o que a gente faz. A senha, portanto, seria uma maneira de dificultar um pouquinho mais a atividade desses gatunos de plantão. Só que elas servem muito mais pra nos dar a SENSAÇÃO de segurança do que a segurança propriamente dita. Hacker que é hacker vai conseguir invadir sua conta. É que nem alarme antifurto residencial ou veicular. O bandido legítimo conhece técnicas apuradíssimas de burlar esse sistema. O dispositivo de segurança, portanto, costuma recair sobre a vítima, que é o dono do equipamento. O alarme que dispara sem querer. Seu carro parar do nada no meio da Marginal porque uma falha acionou o corta-gasolina. E por aí vai.

Criar senhas exige que você seja um especialista em diversas disciplinas. Você precisa ter a matemática do Bill Gates, a paciência do Buda e a bola de cristal do Walter Mercado. Nem o Russell Crowe, no papel principal do filme Uma Mente Brilhante, que enxerga sequências numéricas lógicas o tempo todo, conseguiria criar senha de primeira aqui no Brasil. Não bastasse isso, os estudiosos recomendam que você troque sua senha a cada três meses. Agora multiplica isso por 257 (a quantidade de senhas que eu citei no começo do texto, e você provavelmente esqueceu). Ou você cria um padrão, estipulando pra você mesmo uma lógica que é só sua, ou será aquela pessoa que empaca as filas de supermercado. Que, invariavelmente, costuma ser a pessoa da minha frente. E você ainda precisa respeitar as diversas restrições. Senha de banco não pode ter número sequencial, não pode ter número "fácil" (tipo 01012020), nem números repetidos em seguida, nem data de aniversário. Já as senhas pra todo o resto que você faz na vida são as chamadas senhas alfanuméricas. Elas devem ter, obrigatoriamente, um mínimo de 8 caracteres, letras maiúsculas, letras minúsculas, números, caracteres especiais e nada me tira da cabeça que o Governo aprova ainda esse ano a obrigatoriedade das letras do alfabeto hebraico e cirílico. Feito isso, aparece na tela um bastão azul e vermelho indicando se você está grávid... ops, quer dizer, o nível de segurança da sua senha. Quanto mais complexa, mais difícil a ação dos terroristas virtuais. E mais fácil de você esquecer.

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