O pronunciamento do presidente da República, Jair Bolsonaro,
foi equivocado em diversos aspectos. Inconsequente ao incitar a quebra da
quarentena, ou confinamento em massa em suas próprias palavras, desobedecendo às
recomendações da OMS. Temerário ao sugerir que as escolas e o comércio em
shoppings não permaneçam fechados, contrariando as táticas de conter os focos
de disseminação do vírus e, com isso, retardar os efeitos da proliferação até
que o nosso sistema de saúde ofereça a estrutura necessária para enfrentar esse
pandemônio. Perverso ao colocar a Economia em primeiro lugar, à frente da
questão de saúde pública, muito embora saibamos que as falências generalizadas
trarão efeitos colaterais igualmente letais ao país. E prepotente, ao se
colocar incólume às ameaças, graças a seu corpo de atleta.
De resto, o tom do discurso foi mais do que previsível. E velho.
Enquanto as autoridades médicas – e os governadores dos Estados – estão tomando
providências à medida que os fatos se desenrolam, reciclando seus conhecimentos
e se adequando às novas perspectivas, nosso chefe da nação continua teclando a
mesma ladainha de sempre. Gripezinha, exagero da mídia, problema da China. Para
os especialistas, o hoje é diferente do amanhã. Para Bolsonaro, não. Os números
até podem aumentar em progressão geométrica. Mas o discurso do beócio é sempre
o mesmo, calcado em suas convicções toscas. O hoje é igual ao ontem, que é
exatamente idêntico a 1964. O único momento da história do país que
desconstruiu essa narrativa progressista de crescimento foi entre 2003 e 2016. Bolsonaro
é tão simplório em suas atitudes, e confiante de que isso seja um mérito, que
confunde cadeia de TV nacional com Twitter. Com seu cinismo de praxe, usou parte
do tempo ao qual tem direito como mandatário para lavar roupa suja e atacar,
indiretamente, a Rede Globo e seu médico que entrevista e abraça travesti assassino, o
dr. Drauzio Varella.
Mas o que me espanta de verdade não é esse palavreado monocórdico e repetitivo, como se o áudio do aparelho estivesse sintonizando uma
estação de rádio com músicas tocando no modo looping. Ou mesmo as esperadas
reações entre meus amigos de inconformismo, indignação e panelaços mentais
individuais. Me chama muito a atenção em particular os apelos que passaram a
eclodir em suas postagens. Em tons extremos e definitivos, um considerável
contingente da minha horda de amigos, conhecidos, familiares e seguidores das
redes sociais solicitou que os bolsominions, os direitistas ou simplesmente
quem ainda apoia o presidente se autodelete do rol de amizades do autor da
publicação. Aí eu já acho que a coisa perde um pouco o sentido. Claro, não dá
para conviver com alguém que emporcalha nossa página com fake news, argumentos
suspeitos ou posições ideológicas diametralmente contrárias. Mas o clamor em
linguagem de ameaça, em tempos de confinamento social, é no mínimo perigoso e
igualmente violento. Existem diferentes motivações que fizeram o eleitor optar
por Bolsonaro. Desde uma fé cega e incondicional ao mito, até a percepção de
que ele foi a única via possível para aniquilar o peso político do PT. Muitos
eleitores do Bozo, hoje, estão arrependidos ou fazem o chamado “apoio crítico”,
reconhecendo falhas e exageros, porém, em sintonia com sua política econômica
neoliberal. E outra: se os extremistas continuam invadindo a página dos meus
queridos, alguma coisa está errada na lógica matemática dessa ferramenta. Pois
o Facebook consiste no paradoxo de agregar pessoas, criando-se uma rede, e
selecionar por meios algorítmicos as possibilidades de interação. Ou seja, do
ponto de vista prático, é o próprio Face que cuida para que suas ideias e
opiniões sejam vistas pelos mesmos amigos e seguidores. Falar em bloquear
pessoas com pontos de vista contrários é ratificar e intensificar esse
movimento de criação de bolhas e redomas sociais, trazendo o indivíduo ao
confinamento de sua zona de conforto que nada tem a ver com a ameaça do vírus.
Eu sinceramente acho que a catástrofe não está lá fora, nas
ruas e nos supermercados, com os vermes à espreita só esperando o momento certo
de nos atacar. A pandemia real está aqui dentro do conforto dos nossos lares.
No início, prometemos pra nós mesmos que, passada a quarentena, voltaríamos a
nos beijar e abraçar muito. Até agora, deu o contrário. Estamos com um cagaço
da porra. De contrair o corona, de perder o emprego, de zerar nossas economias
domésticas e não encontrar qualquer tipo de auxílio do sistema financeiro em
progressiva bancarrota. Pra completar, o porta-voz do nosso Brasil é um vomitório
de asneiras. Estamos ociosos e ansiosos. Intranquilos a cada vez que ligamos o
noticiário. Tudo isso só está nos levando ao abismo da neurastenia. Saramago
foi profético em parte. Assim que nos curarmos da cegueira, continuaremos
míopes. E cada vez mais hostis. As conseqüências do pronunciamento de Bolsonaro
são incalculáveis, pois projetam para o futuro exatamente o que fizemos no
passado. Voltamos às briguinhas de colégio de 2018. Pra mim, já deu.
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