segunda-feira, 23 de março de 2020

Começam as contradições


Alguns chefes de governo, autoridades e especialistas médicos estão recomendando para a sociedade não entrar em pânico. Nada mais justo. Se já é difícil controlar a pandemia em condições normais de temperatura e pressão, imagina num calamitoso estado de histeria coletiva. Nesse momento, a calma e a tranqüilidade são artigos tão essenciais quanto o álcool gel.

Para seguirmos nossas vidas de maneira mais ou menos segura, ou pelo menos com a insanidade controlada, basta obedecermos às recomendações dos profissionais que estão a toda hora, em todas as mídias. Em primeiro lugar, é muito importante lavar as mãos. Usamos essa orientação como se fosse um mantra. Só que mão é um conceito muito vago. Aí vem o update: lavar por 40 segundos a mão, as unhas, as juntas dos dedos e o pulso. E o vírus não escolhe só as mãos pra se instalar. Ele pode aparecer atrás da orelha, ou nos vincos das narinas, no umbigo e em qualquer reentrância sobre a qual você não costuma dar conta. E os recados médicos vão ganhando força e amplitude. Afinal, esses profissionais também estão aprendendo tanto quanto a gente. Eles nunca enfrentaram uma situação assim. Aí vem o update do update: a disseminação de posts falando pra tirar a barba. Ela é foco de bactérias (muito embora, como o próprio nome diz, o coronaVÍRUS não seja uma bactéria. Mas tudo bem. O importante são os hábitos higiênicos). E todo aquele feminismo de não depilar a perna ou deixar crescer os pelos das axilas cai por terra. Vamos juntos combater a proliferação desse malvado. Vamos procurar dentro de nós aquele mais recôndito orifício que a gente não ensaboa desde a greve dos caminhoneiros. Vamos raspar tudo quanto é pelo de contágio, eliminar nossos cabelos e tirar um selfie do novo look que parece que estamos entrando numa sessão de quimioterapia, mas NÃO VAMOS ENTRAR EM PÂNICO.

E as novidades continuam aparecendo. Não basta lavar as mãos ou usar álcool gel. A roupa que você usa pode estar contaminada, caso tenha encostado em outro foco infeccioso. Estudos recentes mostram que o corona não é um vírus de inverno. Ele resiste ao calor, à água, sobrevive no ar e pode ficar alojado em superfícies por um período ainda desconhecido, mas já se fala que alguns deles pretendem usar a Lei do Usucapião pra se instalarem permanentemente na sua bolsa ou mochila. Ou seja, quando você chega em casa (nem deveria ter saído), a primeira coisa a se fazer é tirar os sapatos. Se não tiver nenhum vizinho olhando, tire toda a roupa e coloque direto na máquina. Sem falar com ninguém, vá direto ao chuveiro. Isso vale pra hoje. Capaz de amanhã uma equipe de sanitaristas vestidos de uniforme da NASA e capacete espacial dar banho em você usando um esguicho de agentes químicos. Lavar as roupas guardadas é bom também. Nunca se sabe se aquele  vestido que você usou no casamento de sua prima que hoje está com 50 anos está infectado. Medidas de precaução. Hoje você joga uma ducha no seu Nike, amanhã você taca fogo no seu guarda-roupas inteiro, mas NÃO VAMOS ENTRAR EM PÂNICO.

Supermercado é outro fenômeno a ser estudado. Roga-se para as pessoas evitarem as aglomerações e se dirigirem a locais públicos somente em casos de extrema necessidade.  Tentemos entender a lógica. Com exceção dos hindus, ninguém vive de luz. Se um freguês vai ao supermercado e lota seu carrinho de compras, isso quer dizer que ele vai diminuir a freqüência de voltar ao estabelecimento, seguindo as recomendações. Só que, em tempos de zumbilândia, carrinho cheio virou sinônimo de egoísmo. De ostentação. Colocar 2 rolos de papel higiênico na cestinha significa que o próximo da fila vai ficar sem. Mas não vamos falar de cocô. Vamos falar de comida. Durante essa quarentena de 20 dias, que pode durar 1 mês, ou quem sabe esticar até as Olimpíadas, as pessoas estão em casa sem nada pra fazer. E com o cu na mão porque não sabem como vai ser amanhã. Se ainda vão ter emprego. É a ociosidade que estimula a ansiedade. E, na maioria dos casos, pessoas ansiosas tendem a comer mais. Está rolando um vídeo nas redes sociais em que, dentro de um supermercado abarrotado de gente, um sósia do cantor Péricles tem um ataque de fúria, sobe num carrinho e começa a gritar com as pessoas. Ele fala pro povo ir pra casa, pra não entupir o carrinho de mercadorias. Seu discurso até que faz sentido. O problema é aquela imagem, a cena típica do Apocalipse. As pessoas não sabem, então, se devem se munir de estoque pra evitar o contato físico ou se devem ser solidárias e viver como sobreviventes de Auschwitz, mas NÃO VAMOS ENTRAR EM PÂNICO.

Ah, tem também o movimento pra parar o Brasil. Sim, frear completamente. Numa realidade em que PIB zero virou uma projeção otimista. Num desses vídeos que o amigo do vizinho nos encaminha em grupos de WhatsApp, e a gente acaba clicando por falta do que fazer, o Marcos Mion faz um apelo sério pra sociedade. Começa falando calmamente sobre os cuidados que devemos tomar, mas depois vai aumentando seu volume de voz. Num surto de empolgação, grita para as pessoas não saírem de casa. Parece que a única maneira de as pessoas entenderem o recado é pelo modo berro. Frases apelativas e ululantes que nos fazem parecer idiotas. O apresentador tratando seus seguidores como se eles fossem os piores clipes do mundo. E aí, meus caros, temos médicos aprendizes, políticos oportunistas, consumidores ensandecidos e celebridades esquecidas que nos entopem de informações novas e diferentes a cada dia, mas NÃO VAMOS ENTRAR EM PÂNICO.


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