quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Geração 68

Nasci em 1968. Tenho, portanto, 52 anos. E o conselho que posso dar a vocês, meus amigos, do fundo do meu coração, é: excluam, bloqueiem, deletem, eliminem de todas as formas possíveis as pessoas nascidas nessa data.

 

Sei que pode parecer cruel agir dessa forma com quem fez parte de um período de grandes transformações mundiais. Que nasceu junto com a revolução. Nada disso. Talvez você até tenha trazido no seu imaginário a figura de Godard ou Bertolucci, ícones de uma geração contestadora. Mas, no fundo, é bom lembrar que meu prelúdio de vida coincide com o Ato Institucional número 5.

 

Quem é de 68 ocupa espaço num limbo histórico. Preenche um vácuo tardio demais para a geração hippie e precoce demais para a geração Z. Teve sim a Tropicália, o Jimi Hendrix, a pop art de Andy Warhol, o Cinema Novo, os guerrilheiros e muito mais representações simbólicas e ferozes de uma sociedade inquieta. Mas eu estava cagando nas fraldas, e minha única preocupação era não tropeçar nos fios da Telefunken enquanto engatinhava. Ou engasgar com os gordos farelos da farinha láctea Neston. Meu pipi era subdesenvolvido demais para que eu pudesse participar das orgias, esbórnias e bacanais promovidos pelos ripongas e seu estilo de vida flower power. Morria de inveja. Sei apenas de ouvir falar que o sexo era algo corriqueiro e, para se conseguir, nem era necessário postar selfie de biquinho no Tinder. Vivi tardiamente essa experiência louvatória a Jim Morrison. A viagem delirante enquanto se ouvia a voz rouca de Janis Joplin. Hoje a rouquidão com a qual temos de nos conformar é do MC Guime. Ouvia relatos e mais relatos de como era bom tudo aquilo. Maconha, incenso e Deep Purple, tudo junto e misturado. Dava pra ver no semblante dos adeptos à dieta macrobiótica (os pais do vegetarianismo, portanto, avós do veganismo) como eles foram felizes. Hoje é meio difícil perguntar a eles. Qualquer coisa. Sua memória se esfacelou com os chás de cogumelo. Outros fizeram viagem de ácido e nunca mais voltaram. Talvez ainda haja algum remanescente razoavelmente sóbrio, frequentador assíduo do Café Piu Piu no Bexiga, que possa nos rechear de mais histórias bacanas. Aquela reunião de amigos na casa do mais endinheirado, que acabou de voltar dos Estados Unidos e trouxe o Paranoid, do Black Sabbath. Nos anos 70, não dava pra ouvir disco nacional. Eram lançados com dois anos de atraso, o vinil era flácido, a capa molenga, faltavam encartes e as fotos eram trocadas por causa da censura. O jeito era então botar a bolacha pra tocar na Pioneer enquanto se bebia um copo de cuba libre e se beijava a sósia da Rita Lee. Quem viveu, viveu. Viagens a lugares desérticos, todo mundo hospedado na casa de todo mundo por vários dias, luaus intermináveis, pedir carona na estrada rumo a algum canto em que estava rolando um festival. Woodstock pra mim era só o nome de personagem de desenho animado.

 

Também já era maduro demais pra me deleitar com o que veio depois. Entrei na fase de precisar estudar, trabalhar, ganhar dinheiro. Confesso que nunca na vida assisti a um episódio de Chaves. Conheço a figura por causa das camisetas, dos memes e da coleção de bonecos do Mc Donald’s que se esgotou em questão de horas. Mas não faço ideia de quais sejam seus bordões. Uma vez quase briguei com um amigo porque não entendi uma frase que ele comentou, fazendo uma apologia ao seriado. Não sei do que se trata os Cavaleiros do Zodíaco, embora identifique uma música irritante de fundo. Devo ter assistido, em toda a minha vida, no máximo meia hora de Castelo Rá Tim Bum. Jamais assisti a Malhação. Quando frequentava os shows de stand up com mais regularidade, sempre tinha um momento de branco total pra mim. Praticamente todos os comediantes, em algum momento de seu show, falam em hadouken. Não sei o que isso significa. A maioria da plateia ri. Menos eu.

 

Em compensação, eu também jorro informações baseadas no meu referencial que não dizem respeito a ninguém. Nas poucas vezes em que me apresentei contando piadas, falava sobre um tiozinho que ficava numa banqueta nas ruas do Centro da cidade, em frente à porta de algum puteiro, anunciando que o show de strip tease estava começando exatamente naquele horário. Durante praticamente 24 horas por dia. Como seria possível uma performance de nudez começar ininterruptamente? Ou nunca acabar? Seria ali o palco do Dia da Marmota? Haveria a presença do Bill Murray na plateia? E o que dizer de outros performáticos da região, que ficavam eternamente anunciando seus shows sem nunca apresentarem o espetáculo ao público? Prometiam engolir facas, atravessar argolas pegando fogo, e o máximo que nos presenteavam era com a imitação de um miado esganiçado. Nesse mesmo núcleo do burgo em que vivo, passou batida a referência aos cabeleireiros, que colavam em suas vitrines as fotos de artistas e galãs impressos em alguma revista da editora Manchete, onde exibiam seus exuberantes penteados feitos à base de laquê. Por falar em cabeleiras esvoaçantes, sou de um período vazio em que era legal curtir metal-farofa. Aquelas bandas misóginas, cujos integrantes vestiam botas com salto plataforma e uma calça listrada bem apertada, parecendo uma zebra. Lá nesse mesmo Centro eu ia ao Mappin. Mas não era pra tomar o chá das cinco na cobertura (hoje chamada de rooftop), pois na minha época isso já não existia mais. Quando eu subia de elevador, não era pra saborear as iguarias paulistanas. Era pra pagar conta mesmo. Tinha um andar inteiro, talvez chamado de ala dos pobres, dedicado exclusivamente à abertura de crediários para que os clientes pudessem parcelar seu Velotrol comprado em 12 suaves prestações. Nem tão suaves assim. Existia no primeiro andar o sonho de consumo, que se confrontava no quinto pavilhão com o choque de realidade. Os fregueses eram mal tratados, vistos como caloteiros (hoje, inadimplentes). Eu ficava horas ali esperando minha mãe receber o carnê da dívida recém-adquirida. Daria tempo de comprar todos os faqueiros e jogos de toalha Santista expostos na loja.

 

Havia também outras lojas de departamento sobre as quais nunca a geração iPhone ouviu falar, como Sears, Mesbla, Dillard’s, Arapuã, Ducal, JumboEletro (joint venture dos supermercados Jumbo com a Eletroradiobraz). Mas a que mais me chamava a atenção eram as Lojas Americanas, que sobrevive até hoje. Lá se vendia a melhor batata frita do país, feita num quiosque e oferecida dentro de um saquinho branco igual ao de pipoca de cinema de rua. Essa rede de lojas também era conhecida pelo seu atrativo em não oferecer um esquema máximo de segurança. Era muito fácil furtar nas Americanas. Nunca fiz isso. Mas tenho conhecidos do clube do qual era sócio, alguns deles também nascidos em 68, que eram craques nisso. Indivíduos bem endinheirados, por sinal. Tinham apartamento no Guarujá, iam todo ano pra Disney, entretanto, batiam uma punheta quando conseguiam embolsar um tablete de Kri. Essa loja era um convite aberto ao crime. Pena que, na pirâmide social, quem o cometia era justamente quem menos precisava cometer.

 

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