quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Burger King

 

Como publicitário e consumidor de fast-food, não posso deixar de admitir: as campanhas da rede Buger King são do caralho.

 Nos meus mais de 30 anos de profissão, confesso que minha relação com a profissão nunca esteve tão desgostosa. A Propaganda perdeu seu brilho, seu charme, sua irreverência. Tá tudo muito genérico, muito padronizado, muito parecido. 2020 escancarou uma tendência que já vinha se notando nos anos imediatamente anteriores. Parece que todos os clientes estão falando a mesma coisa. O discurso é o mesmo. Começamos a prestar atenção nos anúncios, comerciais e postagens no modo soneca. A gente se esqueceu das marcas, pois todas elas parecem fazer parte de um mesmo pacote. Reparou nas campanhas de banco? Tudo igual. É aquele mesmo tom emocional, milimetricamente calculado para fazer chorar. E para vender a imagem solidária de um dos segmentos de mercado mais perversos durante a pandemia. E as operadoras de celular? Minorias raciais fazendo exatamente as mesmas poses, só pras empresas ficarem bem na fita no que diz respeito à diversidade. O consumidor ficou chato. Eu fiquei mais chato. E a Propaganda deveria trazer aquele frescor. Mas não. Ficou tão chata quanto a gente.

 A Propaganda ficou sem graça, em boa parte pela mudança de processos. Hoje você não consegue vender uma proposta se ela não vier embalada numa apresentação em Power Point com 100 slides. A parte boa, gostosa e divertida de se assistir não ocupa mais do que 20% desse projeto. Tá lá, embutida, tímida, seguida de uma defesa criativa. A Publicidade brasileira virou isso. A necessidade de defender e o medo de atacar. Tudo agora é conceito. Um brinde de fim de festa não pode ser só um brinde se não tiver um conceito. Tudo tem que estar amarrado, linkado e outras palavras que os neomarqueteiros adoram usar. A criatividade cedeu lugar à viralização. Não basta ser um gênio. Tem que ter seguidores, tem que promover o buzz, tem que ter uma historinha por trás. Storytelling, debriefing, benchmark, live marketing, social media, user experience. Novos nomes, novos modos de operar, uma nova realidade que camufla, acoberta e ofusca cada vez mais a essência e a alma do negócio: a boa ideia.

 É por isso que eu vejo o Burger King como um oásis no deserto. Me faz lembrar os áureos anos 70, 80 e parte dos anos 90. Quando a Publicidade brasileira era mundialmente premiada com louvor. Quando o comercial de 30” ficava retido na memória pelo seu aspecto inusitado e não pela insistência de veiculação. Quando a gente ligava a TV só pra ver esses filminhos. Folheava uma revista só pra ver os anúncios. Naquela época eu entendia o sentido da frase que diz que o ótimo é inimigo do bom. Que saudades, que delícia lembrar do embate ideológico e publicitário das campanhas da Folha e do Estadão. Aquilo sim era polarização de verdade, de bom gosto.

 O Burger King trouxe de volta essa ousadia esquecida. Deixou de lado a fobia do erro. Não tem pudor algum em mostrar o anti-appetite appeal. Aprendi na faculdade que, de um modo geral, via de regra, o segundo lugar no ranking de consumo costuma se valer de uma comunicação mais agressiva em comparação com o líder. Faz um certo sentido. As campanhas da Pepsi são mais memoráveis que as da Coca-Cola. A gente quase não guardou nada muito marcante da Nestlé, Unilever, Samsung. O Mc Donald’s, por exemplo, faz belas campanhas eletrônicas e digitais. Assistindo ao preparo de um sanduíche, dá vontade de salivar. Nas redes sociais, usa uma linguagem engraçadinha. Até aportuguesou o nome de suas lojas. Mas nada que fique pra história. Do ponto de vista ético e estético, tudo muito convencional. Já o Burger King foi além. Entrou de cabeça na política ao veicular uma campanha contratando o elenco rejeitado por Bolsonaro nos filmes do Banco do Brasil. Pode ter sido uma estratégia oportunista, mas ao menos serviu para cutucar o estado das coisas e trazer um pouco mais de calor a essa publicidade tão branda, tão morna e tão politicamente correta. Publicou a foto de um sanduíche mofado, esverdeado, que despertou nojo ao invés de fome. Mas ali havia uma grande ideia. Aquilo foi uma provocação, um ataque frontal ao seu principal concorrente e arqui-inimigo de vendas, que usa uma série de conservantes e ingredientes químicos para que seus produtos não envelheçam. E eis que ontem, no intervalo da Retrospectiva 2020, me deparo com a mais recente boa-nova da rede. Vi na TV, aquela geringonça que enfeita a sala. TV aberta, Rede Globo, antigo canal 5. Porque, quando a ideia é genuinamente boa, não importa onde seja transmitida. Na pausa em que se recapitulou esse horrendo 2020, o filme do Burger King mostrou pessoas deglutindo um lanche igualmente horrível, composto por gororobas como jiló, pé de galinha, jaca, miojo e outras descombinações. Foi a melhor comparação simbólica do ano. A degustação desse lixo gastronômico causou ânsia de vômito aos participantes, assim como a pandemia, o uso de máscaras e o “e daí?” causaram essa mesma vontade a nós, telespectadores. Parabéns aos envolvidos. Vocês trouxeram de volta o humor a um segmento de mercado tão anódino ultimamente. É isso que de fato nos chama a atenção: uma ideia ótima no meio de um ano péssimo.

 

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