sábado, 10 de julho de 2021

Supermercado

 Era pra ser simples. Escolher algumas marcas de gororobas pra abastecer a casa e matar a fome. Era.

Pego o primeiro carrinho, com suas rodas tortas e desalinhadas, devidamente desinfetado de todos esses vírus que circulam pelo ar, e começo minha busca como quem acaba de entrar na página inicial do Google. A oferta é muito maior do que a demanda. Me perco no meio de tantas cores, sabores e tamanhos. O que é liofilizado? Salmão de planta, como assim?
Nas esquinas da vida e do pet food, cruzo várias vezes com as mesmas pessoas que nunca vi. E provavelmente nunca mais as verei. Elas passam, apertam a embalagem do pão de forma e vão embora, carregando apenas o pedestal do seu desprezo pela mercadoria.
Continuo minha peregrinação pela melhor relação custo-benefício. Cartazes amarelos gritando "de tanto por apenas" é o que não falta pra chamar minha atenção. Escapo de todos. A não ser de um: vale muito a pena pagar R$ 1,99 pela felicidade de adoçar a boca com uma água gaseificada sabor gengibre.
Como num círculo vicioso, repleto de zumbis drogaditos procurando as mesmas coisas que eu, deparo-me novamente com aquele rotundo e espaçoso consumidor que se acha o proprietário do estabelecimento. Só que agora nossas rotas se travam em outro capítulo: sabão em pó com nova fórmula hipoalergênica.
Prestes a desistir, continuo minha jornada em busca de saciar meus desejos que eu nem sei exatamente quais são. E de repente, não mais que de repente, no perigoso cruzamento entre as fileiras dos palmitos em conserva e dos glutamatos monossódicos, eis que surge ela, distraída, em busca da melhor azeitona azapa, e colide frontalmente com meu veículo. Felizmente, ninguém se feriu. A não ser meu pote de margarina sem sal, ligeiramente danificado por causa de tal imperícia da condutora. Na hora, pensei em acionar as autoridades e fazer um boletim de ocorrência. Desisti assim que a olhei furtivamente. Foi amor à primeira vista.
Estúpido eu. Burro, burro. Por deixar de aproveitar a promoção de creme dental com eucalipto? Não. Por não expressar tudo o que senti por aquela deslumbrante imagem assim que a avistei. Sou craque nisso. Coloco nas minhas redes sociais, nos meus blogs e nas minhas anotações as palavras, os verbos e os objetos diretos pra todo mundo ler. Menos ela. Trago aqui pra você todas as minhas metáforas, hipérboles e catacreses, mas sou incapaz de dizer a ela ao pé do ouvido um simples "gostei de você mil vezes mais do que aquele chocolate meio amargo".
Mudo, extremamente calado e cabisbaixo, dirijo-me obstinadamente à geladeira dos produtos próximos ao vencimento. Espécies que perderam a validade de existir e de encantar. Aqueles que já começam a sentir a temperatura fria da própria morte. Estão ali, desesperançosos como cachorro dentro da carrocinha, cientes de que sua hora está para chegar. Valem menos da metade do que valiam nos seus tempos áureos, quando acabaram de vir ao parque de compras. Escolho o invólucro menos roto e sofrido das linguiças de frango. São esses cilíndricos pedaços corados de acidulantes que vou salvar do abatedouro. Ainda penso nela, e nem o mel do iogurte grego me faz esquecê-la. Queria encontrá-la casualmente, muito mais vezes, nas coincidências do destino e nos corredores de inseticidas. Eu preciso dessa segunda chance. Mas nossos descompassos falam mais alto. Não fomos feitos um para o outro. Meu interesse é pelo queijo camembert. O dela, pelas palhas de aço. Entre engasgar com o soluço do próprio choro e escolher o melhor grano duro integral tricolor, fico com a segunda opção.
Olho para os filés de atum com azeite de oliva e para os isotônicos sabor lichia sentados no banco de passageiro do meu quadriculado possante. Eles me entendem. São cúmplices da minha tristeza. Espremidos pelo pacote de 24 unidades de rolo de papel higiênico dermcare, aconselham-me a seguir a vida. Bora procurar o mais delicioso presunto parma pra apaziguar essa angústia.
Satisfeito com o volume de badulaques pra preencher minha pança e meu ócio, conduzindo meu lotado quadriciclo em direção ao caixa, ouço de longe o estilhaço metálico de uma nova colisão acidental. Subo minha cabeça por cima das caixetas de aveia em flocos, com o objetivo de se obter a visão mais privilegiada do infortúnio. É ela, novamente ela. A culpada e responsável por aquele agudo estrondo oriundo da junção entre os fios de alumínio em sentidos opostos. Antes que a infratora se desculpasse pelo estrago causado ao quilo de maçãs argentinas do motorista prejudicado, sinto um clima estranho no ar. E não estou me referindo a nenhum tipo de borrifadas de purificador fragrância jasmim. Seus olhares se entrelaçam, e nessa troca meu coração sente que houve um mútuo perdão. Saem de mãos dadas, acompanhados pelo ritmo desafinado das rodas danificadas dos carrinhos. Rastros de detergente líquido neutro que se soltou de uma embalagem avariada desenham no chão o caminho do amor.
Nesse exato momento, eu ainda estava escolhendo um vidro de molho de tomate pra encerrar a compra. Era como uma espécie de bônus para o meu apetite pantagruélico. Numa mistura de susto e de ódio, obviamente deixei cair o recipiente no solo. Aquilo que restou na superfície do supermercado era eu. Um monte de cacos, em frangalhos, sendo lentamente banhados pelo líquido espesso vermelho-sangue da cobertura culinária que rege as refeições dominicais. O molho basílico morreu na contramão atrapalhando o tráfego da reposição de estoques.
A fila anda. Devagar, mas anda. Trava um pouco quando o freguês da frente resolve fazer uma recarga de celular ou adquirir um pacote de Marlboro Ultra Light. Mesmo assim, ela vai. A passos curtos, e apesar da desobediência de alguns desavisados em relação à quantidade máxima de 15 volumes no caixa rápido. E foi nesse frenético andar dos comboios prateados, acompanhado pelo sincronizado apito sentido pelas garrafas de cerveja pilsen que passavam pela esteira rolante, que me distanciei cada vez mais do prematuro casal. Ali estavam eles, com suas ecobags e suas lasanhas congeladas, acionando o bipe do chaveiro para destravar as portas da SUV 2020/2021 do rapaz. Sem máscaras, a essa altura do campeonato. Sem distanciamento social. Muito pelo contrário. E não me pergunte onde o álcool gel 70% se encaixa nessa história. Abriram o vidro elétrico, encostaram o código de barras do ticket de estacionamento no leitor e, passada a cancela, foram viver felizes para sempre. Ou, pelo menos, até quando o filé mignon suíno acabar.

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