quinta-feira, 17 de outubro de 2024

48ª Mostra

A 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, vulgo Mostra, já começa com um pedido oficial de desculpas, publicado no seu perfil das redes sociais, em decorrência da enorme procura por ingressos pelo novo filme do Walter Salles. Teve de se justificar que as parcas duas exibições foram determinadas pela distribuidora, em contrato, o que dificilmente vai a contento das centenas de ansiosos, desesperados cinéfilos ou baladeiros que, com suas manias obsessivo-compulsivas, não aguentam esperar por mais um mês até o momento de sua estreia.

Fez menção também à plataforma de compra de ingressos por aplicativo, Velox, que, como é de se esperar, está muito longe daquela tecnologia perfeita vislumbrada por Fritz Lang ou George Lucas. A Velox é uma espécie de prima da Enel nos quesitos problemas técnicos, falhas na finalização e péssima experiência de usuário. Falando nisso, vale lembrar que essa procura antecipada se deu nos dias em que a cidade ficou sem luz, sem água, sem internet, com shoppings lotados de pessoas espetando carregadores de celular em espaços instagramáveis justamente pra conseguir um fio de carguinha e concluir a compra virtual de uma entrada para o novo filme do Cronenberg.
Além disso, a organização implorou para que os seguidores evitassem usar de xingamentos (!) para expor sua indignação.
É a Mostra sendo a Mostra. Desta vez, o medo da ameaça constante e iminente da perda de patrocínio passou longe (graças ao bom Deus). Estão programados nada menos do que 417 filmes, distribuídos em tudo quanto é canto, desde os cineclubes Bijou e Cortina, circuito baratex Spcine, até o consagrado roteiro da região da Paulista, como Reserva Cultural, Cinesesc e 5 salas do Cinesystem Frei Caneca. Mais uma vez, os icônicos Cine Marquise e Reag Belas Artes ficaram de fora da brincadeira.
Pode parecer acesso a uma ampla possibilidade de escolha. A meu ver, essa nababesca oferta, fruto de uma megalomania inconsciente de quem faz isso tudo acontecer, deixa o espectador mais perdido do que saciado. Afinal, qual vai ser seu foco?
Tentar encaixar quase meio milhar de obras fílmicas em cerca de 20 dias é um trabalho muito mais árduo do que prazeroso. Vale a pena debruças nas retrospectivas, sempre o ponto forte do evento, este ano homenageando o indiano Satyajit Ray. Tem também uma leva de filmes que abordam as questões do Oriente Médio. Várias e várias avant-première de filmes brasileiros. Vencedores de palmas de ouro, ursos, leões e tudo quanto é bicho de festival (analogia usada pela Renata de Almeida na coletiva de imprensa). Mas será mesmo que é sadio disputar a tapa um lugar pra ver esses queridinhos de Cannes, Berlim e Veneza, só pra depois usar uma camiseta escrita "eu fui"? Não seria mais sensato aguardar sua estreia em relativa larga escala?
Entre esses filmes que servem pra influencer engajar seguidor, de Brutalista a Maria Callas, e filme que ninguém ouviu falar, existe uma grande vácuo. E talvez aí resida o campo de maior interesse. Claro, arte é risco. Você pode encontrar uma preciosidade escondida ou uma verdadeira bomba em campo minado. Porém, com internet que funciona, ano após ano a Mostra vem perdendo seu aspecto "garimpo". Quase tudo já foi explorado, dito, criticado, baixado antes mesmo dos arquivos digitais (antigamente, rolos de filme) chegarem ao cloud (antigamente, alfândega).
Os problemas da Mostra se apresentaram, neste ano, antes mesmo de ela se iniciar. Na cabine de imprensa do experimental Why War, de Amos Gitai, o filme estava legendado em italiano (diferentemente da prometida legenda em inglês). Se isso é um prenúncio do que está por vir, ou se "faz parte" de todo o contexto que a caracteriza, não sei. Relaxa e goza, é o que tem pra hoje.
A Mostra é uma ótima oportunidade de rever os amigos. Bater longos papos, quando e se possível. Na maioria dos casos, a saudação não passa de um "oi-oi". Afinal, é o encontro de duas frenéticas locomotivas, entrando e saindo de uma sala pra outra, na tentativa de se assistir ao máximo possível de produtos da Sétima. Mesmo assim, achar esses colegas que você vê uma vez por ano pode ser algo muito saudável - ou uma verdadeira decepção. Divergências políticas e ideológicas, mudanças de hábitos e costumes andaram separando um pouco o clã da velha guarda. A Mostra tanto agrega quanto separa. Não deixa de ser, em última instância, um protagonista do divórcio de amigos. Ainda mais em período eleitoral. E outra: é dolorosamente triste rever cinéfilos que vão envelhecendo, caducando, peregrinando de uma sala pra outra cada vez mais lentos e curvados. A Mostra é também o nosso espelho, que nos "mostra" a nossa própria finitude.
Nesses conluios formados em salas de espera e filas de bilheteria, existem grandes chances de eu me reencontrar por meio do outro. Já estou até prevendo ouvir o famigerado clichê "oi, sumido". Como se, durante 365 dias, eu ficasse hibernando numa câmara de criogenia. Talvez eles tenham razão. Sem perceber, acho mesmo que desapareci daquilo tudo que poderia me transformar numa pessoa melhor. E a Mostra é a grande chance de virar essa chavinha. Ou não. Pegar fila, encarar sessão com 1 hora de atraso, baixar app defeituoso, tentar dormir em poltrona de sala que passa documentário sobre a vida das abelhas da Indonésia... eu, hein?

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