sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Meu boicote à Mostra

“Que absurdo ver tanto filme em tão pouco tempo. Isso é coisa de maluco”. Essa era minha impressão resumida sobre os cinéfilos que freqüentavam e freqüentam, assiduamente, a Mostra de Cinema. Para sentir na pele o que é esse hábito viciado, fiz uma espécie de autoteste com toda a curiosidade de São Tomé que me cabe e comprei a permanente integral, que dá direito a ver todos os filmes do festival. Não teve jeito. Passei a encarar com a maior naturalidade aquilo que antes achava uma aberração. Como diria minha mãe, eu “fui picado pelo bichinho da Mostra”. Isso foi em 96. De lá pra cá, todos os anos, eu compro a permanente e mergulho nessa saudável insanidade.

Mas nesse ano resolvi fazer diferente. Como em tudo na nossa vida, existe um momento em que é necessário reciclar valores e repensar comportamentos. Adotei 2008 (32ª Mostra) como uma ano sabático, por diversos fatores que esmiuçarei a seguir. A maioria dos argumentos refere-se a questões meramente pessoais, mas é bom registrar também que, se não for tomada nenhuma atitude, pela lei da inércia tudo ficará exatamente como está.

O primeiro deles é por uma boa causa. Está entrando dinheiro na minha conta bancária. Diferentemente de muitos amigos, que infelizmente se sentiram obrigados a abandonar a maratona para conter suas despesas pessoais, no meu caso andei acumulando uma série de freelas e trabalhos temporários. Adquirir a permanente para ver pouca coisa não compensa seu investimento. Graças a Deus, o mercado publicitário vive uma situação próspera. Como o susto da Bolsa irá trazer conseqüências desfavoráveis num futuro próximo, isso é inevitável, é bom aproveitar este curto momento de calmaria.

Outro motivo, de menor relevância mas que também contribui para meu sumiço, é que andei notando um certo cansaço do festival. Antes pra mim tudo era uma novidade, uma grande surpresa. Tenho saudades dessa época mambembe, em que prevalecia a experimentação e o rumo ao desconhecido era uma inerente regra. Com a minha profissionalização (se é que dá pra se chamar assim) em relação à arte, com a proliferação dos sites e geradores de conteúdo em primeira mão, a informação prévia passou a ser o mecanismo condutor dessa rota considerada alternativa. Aquilo que era tido como inédito foi aos poucos se submetendo a um crivo pré-determinado que foge aos conselhos dos amigos, ao bate-papo informal, à informação quente de boca-de-urna. A Mostra vem, cada vez menos, contemplando o novo, o obscuro. Com tanta informação à disposição, fica uma sensação de que o oculto cedeu lugar ao esquematizadinho. O imprevisível da Mostra perdeu seu brilho, seu encanto. Desde que comecei a fazer parte de organismos de divulgação cultural, tenho a impressão de que tudo o que penso e que todas as minhas sensações e impressões primeiras devem ser transformados em texto, em artigo, em matéria, em votação. Em alguns casos, numa desenfreada corrida contra o tempo, em que a análise amadurecida poderia ganhar ares de notícia velha. A Internet trouxe inúmeros benefícios, mas nada como a arcaica troca de experiências, sem esse pragmatismo mecanicista todo.

Agora vamos aos critérios práticos e alheios. Uma parte bastante considerável do acervo acaba, mais cedo ou mais tarde, entrando em circuito. Os filmes mais aguardados, como dos irmãos Coen e Dardenne, com certeza absoluta. Alguns improváveis também. A Mostra tornou-se uma espécie de avant-premiére de luxo. É preferível ver estas películas no conforto das salas vazias, sem a notória muvuca que caracteriza o evento, e ainda com a possibilidade de escolha (ainda que mínima, em alguns casos) de salas e horários.

Uma tendência que me desagrada bastante é a presença progressiva e massiva do digital. Mais de 200 títulos (quase a metade) serão exibidos neste formato, de acordo com o próprio organizador. Aquilo que foi colocado por ele em tom sorridente e positivo de modernidade pra mim soa mais como desleixo ou economia burra. Nada contra o digital em si. Muitos realizadores optam por esta tecnologia de captação de imagens para viabilizar seus projetos. Trata-se sim de um meio mais acessível, mais ágil e mais democrático. O que me incomoda é a baixíssima qualidade de reprodução destes trabalhos, equiparados nas bilheterias às grandes produções. Não há a mínima concessão, não existe a mínima distinção de valores de ingresso entre a boa e velha película e a exibição em digital, muitas vezes pecando por sua imagem tosquíssima e seus inúmeros problemas de sinal “aperte o play” vindo lá dos cafundós da sede da Rain Network. Numa sociedade que cada vez mais preza e sonha com o Blu-Ray, o HDTV, a câmera de 12 megapixels, é inaceitável assistir a filmes chapados, desbotados e esmaecidos, sem contraste algum, no mesmo patamar de qualidade dos DVDs de camelô.

Ainda me lembro dos tempos em que o cinéfilo era uma prioridade na Mostra. Nas aberturas do festival, por exemplo, os contratados praticamente estendiam um tapete vermelho aos freqüentadores de carteirinha. O convite à abertura era automático aos portadores de permanentes. E algumas destas sessões inaugurais foram memoráveis, como o show da banda do Kusturica. Entretanto, desde que este momento passou a ser realizado no auditório do Parque do Ibirapuera, cada vez mais o cinéfilo foi perdendo o seu direito credencial. Disputando lugar a tapa com celebridades e autoridades políticas, o assento do verdadeiro cinéfilo foi reduzido a uma cota de 10% dos lugares disponíveis, mediante inclusive à impressão do convite eletrônico e troca deste papel por uma senha na recepção. Não reclamo aqui do fato de que este evento ficou mais chocho, mais discursivo e mais enfadonho. Mas aquilo que era um benefício consagrado tornou-se objeto de disputa, algo totalmente desnecessário para quem foi tratado como VIP durante décadas, mesmo não sendo figuras socialmente tão relevantes quanto as beldades emergentes, a classe artística ou as sumidades públicas. A Mostra de Cinema não é baladinha da Vila Olímpia. Apesar de eu estar me referindo a apenas um único dia desta maratona, esse recorte é um registro claro e sincero de que o evento como um todo tornou-se cada vez menos cinéfilo e cada vez mais político.

Essa minha atitude convicta foi planejada com uma certa antecedência. Tudo poderia mudar no início do jogo. Mas não. Um incidente razoavelmente constrangedor, resultado de uma postura lamentavelmente antipática e arrogante, comprometeu o nome de três freqüentadores assíduos, cujas participações só teriam a contribuir com o sucesso da Mostra. E, por atingir diretamente a mim, essa demonstração equivocada de seriedade e de controle absoluto só ratificou minha precipitada tomada de decisão. Superei a miguelagem das credenciais concedidas a críticos e jornalistas e continuei comprando a permanente. Superei a restrição recente em relação ao desconto de 15% do Clubefolha (algo em torno de R$ 60), agora válido somente para os assinantes titulares. Mas nada supera a petulância. É por meio deste meu boicote ao conjunto de filmes da Mostra e por meio desta minha atitude de repúdio ao atual estado das coisas que, depois de uma dúzia de anos, deixarei de comprar a permanente. Não sei ao certo se minha firmeza de propósitos acarretará numa insensatez de minha parte. Afinal de contas, os filmes propriamente ditos nada têm a ver com isso. E a gente sabe que, apesar de tudo, a Mostra carrega preciosidades irrecuperáveis. De um modo geral, as retrospectivas têm sido o grande acerto da organização do festival. Isso sem contar os filmes de lançamento improvável. Existe ainda uma chance de eu superar esta postura radical e ceder um pouco no que se refere aos trabalhos menores. Um ou outro, quem sabe, aqui e acolá. Mas, com toda segurança, a Mostra pra mim já não é mais a mesma. No mau sentido. Ela não está se renovando, muito pelo contrário. A balbúrdia dantesca continua livre, leve e solta. A Mostra está apenas se esquecendo de uma parcela que, durante toda a sua existência, só ajudou no seu sucesso. Se esta mudança de paradigma, se esta “transferência de papéis” faz com que os pratas-da-casa sejam tratados com descaso, então a Mostra não é mais o lugar pra mim. Que o patrocínio da Petrobras é infinitamente superior à somatória de bilheteria de todas as sessões, isso a gente sabe. Mas cinema não é feito para poço artesiano, é feito para o público. Para formar opiniões. Para debater e difundir idéias. Se o discurso ideológico foi trocado pelo discurso financeiro, algo comprovado na coletiva de imprensa, então a minha parte eu já estou fazendo. Se depender de mim, a Mostra ficará R$ 390 mais pobre.

Um comentário:

Sérgio Alpendre disse...

agora, vendo à distância, vejo que aquele tratamento VIP foi bem equivocado. Mas vc tem toda a razão quando diz que o capitalismo substituiu a ideologia. E também acho um absurdo cobrarem 18 reais por uma imagem podre em digital (isso quando ela está, realmente, podre). Deveria ser de graça. E quando o digital está bom, metade do preço (ou dez reais, que seja). Qualquer coisa diferente disso é um desrespeito.