Até poucos dias atrás, as principais discussões
cinematográficas giravam em torno de Bacurau e de Era Uma Vez... em Hollywood.
Agora, o anti-Marvel Coringa chega não com a pretensão de encerrar o assunto
longe de se esgotar, mas para abrir um próximo parágrafo diante da questão.
Se esse paralelismo faz parte ou não do inconsciente
coletivo, ou de uma histeria hegemônica social, ou se trata apenas de uma
coincidência, difícil concluir. Nessa tríade, o que chama a atenção é não só o
retrato de uma sociedade doente, mas a urgência de se discuti-la. Vale lembrar
redundantemente que, nos três casos, o produto é ficcional, em seus diferentes
pesos e medidas autorais. No primeiro caso, mergulhamos na psicopatia de um
núcleo invasor, que vem de fora, e usa a pobreza nordestina como palco de um
sádico paintball reality show. É a
própria comunidade invadida que aplica os contragolpes, com os mesmos requintes
de crueldade, durante a catártica vendeta do epílogo. Com essa intensidade
igualmente raivosa, bem aos moldes da milenar Lei de Talião, podemos entender
que o combate à psicopatia só é possível usando a própria psicopatia. No
tarantinesco exemplo, a excessiva caricaturização dos psicopatas abranda um
pouco o episódio “baseado em fatos reais”. O clima de tensão do devir é muito
maior do que a concretização da violência atrapalhada do derradeiro ato
propriamente dito. Aqui, não é a sociedade atingida como um todo que faz o
revide, mas apenas uma dupla da indústria cinematográfica decadente e colapsada
diante de uma nova era. O efeito é, portanto, mais farsesco e menos catártico.
A representação icônica por camadas metalinguísticas (um ator e um dublê de
ator) dilui a insanidade dos Estados Unidos dos anos 70, ou pelo menos a coloca
em outro registro. Já em Coringa, esse rescaldo patológico se apresenta de modo
mais confuso. Não se trata exatamente de um grupo que contra-ataca as
arbitrariedades doentias de outro grupo, como no primeiro caso; nem de um duo
que evita um mal maior a ser causado por um bando de ripongas alucinados pelo
satanismo, como no segundo. Aqui, é um único indivíduo que ao mesmo tempo
rebate a doideira social e injeta nela outras nuances patológicas dessa mesma
loucura. É o eu-sozinho contra o mundo.
Claro, desnecessário dizer que Coringa é um caldeirão de
paradoxos. Comédia e tragédia se misturam como se fossem as facetas de outro
vilão, o Duas Caras. O bordão “rir para não chorar” poderia se encaixar
perfeitamente na sinopse. A chapliniana canção “Smile” sendo executada nas
cenas menos engraçadas é um resquício dessa contida ironia. A música é doce em
sua melopeia rítmica, e parece bailar junto com o Poema em Linha Reta, de
Fernando Pessoa, em que as digressões do poeta lusitano ecoam na cabeça do
personagem interpretado pelo irretocável Joaquin Phoenix. No texto em primeira
pessoa, encontra-se um fracassado que vive num mundo de vencedores. E Phoenix,
em sua ingenuidade do prefácio, parece assimilar esse discurso de uma bondade utópica.
Quanto mais ele acredita no ser humano, mais chutes no estômago ele leva. Nesse
acúmulo de socos e pontapés é que vem a pergunta: de que forma e em qual
intensidade vai surgir a salvadora reversão cômica?
Assim se constrói o universo DC Tragicomics. Os filmes da
Marvel, basicamente, são um recheio de efeitos visuais e pirotécnicos
reluzentes sobre um palco de guerra. Com pitadas de humor. É o show de stand-up
(eu diria talvez Stan-up) num ringue espacial de MMA. A DC procura roer outras
camadas. Coloca a risada onde não há graça nenhuma, o que deixa parte de seu
legado ainda mais dialético. O pingo de sangue sobre o button smile, na cena de
Watchmen em que o primeiro herói morre, traduz um pouco esse sarcasmo
contundente. Não há lugar para stand-up em Coringa. Não há plateia disposta a
rir. O punchline, fechamento de uma anedota, é muito mais punch. Uma porrada,
um soco no fígado.
Do começo ao fim, Coringa tenta provar que a frase
mercadológica de lançamento “coloque um sorriso nesse rosto” é algo
inatingível. Mas aqui eu me permito, acima de tudo, estabelecer uma relação de
tempo e espaço ao filme. Tudo indica se passar em algum lugar dos anos 80. Tem
uma secretária eletrônica. E, não por acaso, tem na fachada de um dos cinemas
da cidade o letreiro do filme Um Tiro na Noite, a reinterpretação que Brian de
Palma faz à obra-prima de Antonioni. Tem Robert de Niro como apresentador de um
talk show, fazendo uma alusão ao Rei da Comédia, no qual ele também trabalha. Mas
as referências não são apenas herméticas, piadas internas, como se a equipe
estivesse lançando um olhar para o próprio umbigo. Coringa se expande ao
mostrar uma metrópole violenta e surrupiada quase como um registro documental
da maioria das cidades que se desenvolveram rapidamente. Poderia Bacurau ser o
retrato do Brasil de Bolsonaro? Sim, perfeitamente. Uma colônia árida atacada
por milicianos gringos que tentam aniquilar a pobreza matando sua população
nativa. Poderia Coringa ser o registro do Brasil de hoje? Também. Somos 13 milhões
de desempregados, fazendo bicos nas ruas, segurando cartazes de lojas de
departamentos prestes a falir, num cenário em que a indústria encolheu 15% nos
últimos 5 anos. A falta de medicamentos por corte de verbas do governo é um dos
elos dessas duas realidades. Protestos de rua numa iminente guerra civil
dialogam muito com a nação que se revoltou e se dividiu não por causa dos 20
centavos. Mas Coringa não se pretende abraçar somente a causa
terceiro-mundista. Chicuarotes, o novo filme dirigido pelo mexicano Gael Garcia
Bernal, que ficou em cartaz no Brasil somente por uma semana, mostra em sua
cena inicial uma dupla de palhaços de rua que entra num ônibus e faz algumas
piadas antes de anunciar o assalto. A Gotham City de Todd Philips (quem diria,
o mesmo que nos divertiu com a trilogia de um grupo de amigos que sofrem de
amnésia pós-ressaca), obviamente, é soturna, suja, sorumbática. Poderia ser a
síntese de uma Nova York pré-Tolerância Zero, como também a Cidade do México, Bogotá
ou até mesmo a Rua Conselheiro Nébias. Existe um convívio forçado entre
vencedores e fracassados, mas, do ponto de vista estrutural, as divisas estão
muito claras. O diagrama do esqueleto de Gothan é quase tão matemático quanto
as fictícias demarcações dogvillianas. Os espaços estão claramente planejados: em
Batville, aqui é teatro de rico, ali é beco de pobre. O que ganha potência em
Coringa (e aí a sensação é de que quem leva chutes no estômago é o espectador)
é justamente quando essa lógica cartesiana se embaralha. O universo trágico não
pertence só aos miseráveis. E a vida, que sempre prega suas peripécias divinas
ao protagonista, pode ser encarada como uma comédia. Afinal, estamos no
registro da ficção. Tudo é espetáculo. Tudo é poesia. Até mesmo a versão
nordestina que Kléber Mendonça imprime a seu Mad Max do sertão. Até mesmo, e
principalmente, os versos finais de Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa, quando
se dá conta de que há pouca salvação para a Humanidade. Phoenix, na pele de
Joker, em sua reversão tragicômica, vem sendo vil, literalmente vil, vil no
sentido mesquinho e infame da vileza.
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