segunda-feira, 6 de abril de 2020

Muita teoria e pouca prática


Durante esse estranho período que mistura ócio e desespero, alguns especialistas recomendam que a gente não pare de colocar em prática hábitos salutares. Já que ir pra academia virou uma questão de risco, onde você pode encontrar inimigos muito mais fortes, poderosos e resistentes do que seu marombado instrutor, a orientação é pra usar a criatividade e fazer exercícios físicos em casa. Afastar os móveis da sala e fazer umas flexões de braço ou alongamento, por exemplo. OK, entendi a proposta. De boas intenções, o Inferno ta cheio. Só que o médico de telejornais não tem noção da dificuldade que é esse tipo de isolamento de mobílias. No caso específico, em que minha residência seja a questão. Aqui é um acúmulo de tranqueira. A tal nível de deixar um coreano assustado. Só o fato de eu arrastar um pouco a mesa de centro, puxar pro lado as cadeiras e retirar o que tem em cima delas JÁ É o exercício. Sábado passado tentei fazer uma faxina na sala. Meio que na onda do povo que anda falando pra gente dispensar a diarista e fazermos nós mesmos a limpeza. Aliás, quem vem dando esse tipo de dica são os mais preguiçosos, já reparou? Mas enfim, uni o útil ao desagradável. Durante a tarefa, meu convívio com a lordose foi tão intenso que acabei adicionando ela no meu Facebook. Primeiro precisei pegar o aspirador de pó. Um trambolhão que estava se desmontando todo. Parecia que foi fabricado pela Lego. Acho que minha mãe deve ter comprado numa promoção. Da Mesbla. Ou da Arapuã, talvez. Depois de reconstituir o Frankenstein, tirei o pó debaixo dos tapetes, dos móveis e de um pufe. Achei debaixo dele um aparelho de telefone fixo da época do Plano Cruzado.

Outra prática que os especialistas nos recomendam é manter uma alimentação saudável e equilibrada. Falar é fácil. Para essas apresentadoras dos programas vespertinos de TV, casadas com donos de startup ou com o próprio dono da TV onde ela apresenta o programa, é bem tranqüilo pedir pro piloto do helicóptero dar um pulinho no supermercado e comprar quinoa. Aliás, jamais poderia imaginar que um dia voltaria a assistir a programas à tarde em TV aberta. A última vez que liguei o aparelho às 3 da tarde estava passando Lagoa Azul. Isso depois do Miguel Falabella juntar as mãos e fazer o sinal da oração. Aí vêm essas recauchutadas me mandando comer brócolis. Aqui é clima de guerra, comadre. A comida mais saudável que tem na despensa é um pacote de Ruffles. Salsicha é que nem cocô do Bolsonaro: dia sim, dia não. Tô deixando pra comer o Miojo sabor galinha caipira na ceia de Páscoa. Se é que a Páscoa não vai ser adiada. Que mané cenoura e beterraba, minha filha. Se eu sair de casa, capaz de todo o bando de vírus atrás do poste perceber minha movimentação e me atacar. Ou então, corro o risco de ser atropelado. Pelo único carro que vai passar na rua durante o dia inteiro. Prefiro ficar recluso, eu e minha caixa de Bis. Outro dia achei uma lata de atum. O invólucro metálico estava bem estufado. Parecia camisa de gordo quando sai de um rodízio.  Desconfio que quem estava morando na lata nem eram mais os peixes. Acho que aquela embalagem virou um albergue de botulismo. Sei lá. Fui procurar a data de validade. Venceu no dia do impeachment da Dilma. Abri a lata. Até o gato da vizinha teve ânsia de vômito. Ontem fui abrir a geladeira. Só tinha água num jarro de vidro da minha avó, copo com um fundinho de requeijão e pilha. Quase comi a pilha.

Se a prática anda bem escassa, já não se pode dizer o mesmo da teoria. Elas pululam nas redes sociais igual às pulgas no colchão do meu quarto. É uma mais bizarra que a outra. Tem gente acreditando que é coisa de alienígena, que usou os terráqueos como para pesquisas científicas. Outros acham que é coisa do Satanás. Grande parte dessas teorias culpa os chineses por esse pandemônio. Umas dizem que o corona é cria de laboratório, e que essa nova espécie seria levada aos Estados Unidos pra disseminar a população inimiga. Outras falam que é pra valorizar as ações da soja local no mercado mundial. Ou para estimular a economia interna, como foi o caso da construção de hospitais em tempo recorde. Uns dizem que o desmoronamento de um hotel que servia de abrigo para os infectados foi uma ação orquestrada pelo governo. Tem muita, mas muita gente relacionando o vírus aos hábitos alimentares do povo mandarim. Que o fato de eles comerem animais, digamos, exóticos, fez com que a doença se alastrasse pelo mundo. Não entendi direito a associação. Até ontem você aí comia yakissoba feito na rua e tava tudo certo. Ou vai me dizer que foi hipnotizado pelo cheiro de fritura do óleo de gergelim? Acho um pouco complicado propagar hipóteses precipitadas. Já tivemos um exemplo da família real, um dos três patetas filhos do presidente, que fez uma declaração que deixou as relações entre os países bem estremecidas. Sem provas, fica difícil validar esses fluxos paranóicos de pensamento. A Fox News andou divulgando vídeos que comprovam uma relação de causa e efeito entre a doença e os chineses. Mas também, né? Fox News. Foram eles que anunciaram o teste positivo do Bolsonaro. Eles são a parcela da mídia mais reacionária do mundo. Pra eles, Paulo Maluf é um bolchevique. Eu confio mais nas notícias narradas pelo Marcelo Adnet do que qualquer noticiário dessa emissora. Vamos aguardar um pouco mais. Em casa. Trancafiados em nossas loucuras.


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