quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Arrombado

Não quero estragar a alegria de vocês. Estamos passando por um processo de reconstrução do país e, ao que tudo indica, as coisas prometem ser menos piores do que no quadriênio anterior. Aliás, feliz 2023 a todos.

Mas, ao passar pelas postagens do meu feed, eis que me deparo com o primeiro anúncio de vaga de emprego do ano na minha área profissional. E não posso deixar de compartilhar minha estupefação. Para o cargo de redator de conteúdo bilíngue, o contratante listou nada menos do que 29 responsabilidades necessárias para o dia a dia. VINTE E FUCKING NOVE. Além, é claro, de dois itens que a empresa considera desejáveis (o famoso "será um diferencial"). Em contrapartida, a descrição da vaga foi muito breve e evasiva ao enunciar o que de fato irá oferecer em troca. Não cita salários ou honorários, apenas esclarece que o modelo de trabalho é híbrido e o regime de contratação é PJ. Ou seja, aquele em que o empregado é patrão de si mesmo, deve se virar e abrir empresa, pagando por conta própria todos os tributos e encargos com serviços de contabilidade. Tudo pra fugir dos esquemas de contratação das antigas leis trabalhistas. E finaliza a postagem prometendo benefícios, mas sequer mencionando quantos e quais são.

Dentre a infinidade de critérios seletivos, não posso deixar de mencionar, para um vulgo redator de conteúdo, "criar plano e táticas para gestão de crise digital" (!!) e (pasme!) "analisar dados, métricas e tirar insights". Ora, ora, vejam só. Não curto muito requentar piadas velhas, mas isso me lembra muito o tipo de resposta que os internautas (outro nome antigo) davam a esse tipo de anúncio: "precisa também ganhar um Prêmio Nobel". O que mais uma vez prova que qualificações absurdas como essa só se encaixam em dois cenários: memes publicitários ou postagens na cômica e fictícia comunidade virtual Vagas Arrombadas.

Não quero aqui menosprezar a competência e as qualificações dos candidatos à vaga em questão. A gente sabe que não tá fácil pra ninguém. Eu mesmo já trabalhei com profissionais altamente capacitados em atributos mais técnicos, matemáticos. Mas o que me chama a atenção é a amplitude do escopo. Talvez a empresa entenda que, quanto maior a lista de exigências, menor a quantidade de pleiteantes. E mais assertivo será o processo de contratação. Na prática, isso tudo me soa como papo furado. É como se estivessem admitindo um cineasta que escreva o roteiro do filme, faça a direção, montagem e ainda atue nele. Profissional assim completo e ao mesmo tempo brilhante, no momento só me vem um nome à cabeça: Orson Welles.

Tá certo que a Propaganda como a conhecemos morreu faz tempo. Não é de hoje que venho dizendo isso. Sou redator publicitário raiz. Daqueles que mostravam o portfólio impresso dentro da pasta do Omar. E não vou dizer que tudo era mais fácil. A gente ficava horas na recepção da agência. Éramos atendidos muitas vezes de modo lacônico e protocolar. Antes mesmo de terminar a rápida entrevista, o premiado profissional nos entregava uma lista-padrão com outros tantos nomes de outros tantos publicitários premiados pra gente procurar. Mas foi nessas condições adversas que aprendi muita coisa. Frases e ensinamentos de algum low profile que se dedicava um pouco mais a ensinar quem estava começando na área ou procurando um lugar melhor. Devo ter visitado quase uma centena desses. E não me recordo de nenhum deles ter me perguntado sobre minha experiência com plataformas de metodologias digitais. Ali, na gigantesca sala de reuniões debaixo de um ar-condicionado em temperatura mínima, eu era elogiado e ao mesmo tempo espinafrado sob um critério único e não menos rigoroso: a criatividade.

Hoje, ao ver minha profissão respirando por aparelhos em seu leito sepulcral, me bate uma certa tristeza. Não pelo seu trágico epílogo em si. Mas por observar os critérios e requisitos da dita modernidade para um posto de trabalho análogo à escravidão.


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