quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Metáfora

- Doutor, é grave?
- Calma, fica tranquilo. Tomando todos os cuidados necessários e os medicamentos que eu recomendar, isso aí logo, logo vai passar.
- Mas... o que eu tenho, doutor?
- Você foi acometido por um quadro de metáfora aguda. 
- Ai, meu Deus... e agora... é como se... os ponteiros do relógio da minha vida estivessem se movimentando mais rápido... é como se o badalo final estivesse mais próximo!
- Não se preocupe. O que você anda sentindo?
- Sei lá, doutor. Meu coração pulsa com a força de um touro e a velocidade de um cavalo. Meu peito dilacerado inspira e expira os ventos gelados da desilusão. O sangue que jorra em minhas veias se transformou num fluido espesso de lubrificante de segunda categoria. Minhas pernas cansadas parecem levitar sobre a aridez cáustica do nosso solo de esperança.
- Mas e a cabeça, como está?
- O que dizer desse globo espelhado de uma discoteca decadente? Essa bola de cristal rotunda e cintilante já não consegue mais prever o futuro. Só se alimenta do ódio e do desgosto do passado. Frequentemente ela é acometida por flechadas certeiras de um guerreiro medieval em plena batalha.
- Estou me referindo ao psicológico. Como estão suas emoções?
- Ai, doutor... é como se as páginas viradas da minha história estivessem voando para os céus e se esvaindo nas estrelas. Difícil conviver com essa bagunça de quarto de criança. Já não consigo mais controlar as intempéries e as tempestades que nascem sem avisar. Momentos de calmaria, raros como uma joia antiga, têm a duração de um contido aplauso de espetáculo, de tão efêmeros e fugazes. O que reina em minha ignóbil existência é a tormenta dos pássaros, a fúria do cárcere, a ira dos deuses.
- OK, anotado... agora me conte um pouco mais das suas relações. Tá tudo bem com sua família? Fale um pouco do seu relacionamento com sua esposa nos últimos dias.
- Doutor, doutor... o que dizer daquela víbora endiabrada? Todo dia, desde que acordo, ela me despreza tal e qual um cachorro faz com um pé de alface. Ignora tudo o que falo, assim como um advogado de acusação diante das declarações de inocência do réu. O negócio dela é me agredir com os açoites dos seus palavrões. Ela me provoca num tom de voz à altura de uma sirene de fábrica. E na hora de dormir? Eu, procurando o aconchego do ninho, com minha volúpia noturna de um gavião, me aproximo de sua pele macia como algodão, para dar o bote de uma serpente. Enquanto ela, na frigidez de sua nevasca, vira de lado, recusa a oferenda libertina, coisa que nem um mendigo faz diante de uma mísera esmola, e põe-se a dormir. Um sono rápido de coelho escapando da armadilha, porém, acompanhado do ronco de uma orquestra sinfônica dos ursos.
- E seus filhos? Me conta um pouco mais.
- Tenho uma filha, doutor. Uma única filha, o número 1 cravado no centro da moeda de real. Ela é tudo pra mim, do zero ao infinito. O problema é que no fim do ano passado foi morar no exterior. A cria decidiu abandonar o conforto do lar que seus algozes proporcionaram durante dezenas de giros da Terra em torno do Sol. Foi estudar Música. Foi aprender com os maestros da vida as duras partituras de crescer e se tornar mulher. De vez em quando a gente se fala. De vez em quando eu vejo de perto seu rosto tão longe quanto a colina de um reino das fadas.
- Perfeito. Só pra concluir: como está seu cocô?
- Desculpa, doutor... preciso responder essa pergunta íntima e secreta de um ritual maçônico? Olha, os pedaços terminais do alimento do meu corpo e da minha alma vão bem, obrigado. Sólidos e maciços como uma rocha, escuros como o azeviche do ébano.
- Então, tá. Vou prescrever essa receita aqui. Tomar duas vezes ao dia, até sentir que os sintomas estão diminuindo. Depois a gente marca uma nova consulta pra eu te avaliar. Ah, e não esqueça: alimentos saudáveis, com pouca gordura, beba bastante água durante o dia, exercícios físicos e boas horas de sono é fundamental.
- Perfeito, doutor. Muito obrigado. Ah, a saída: fica pro lado do comunismo ou do capitalismo?
 

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