segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Feliz 2019


- Robson?
- Patrícia?
- Bom dia.
- Prazer. Pode entrar.

(...)

- É raro ver motorista mulher nessa profissão. Geralmente eu pego homem... quer dizer, motorista homem.
- (Risos). Entendi. É que eu tô dando uma força pro meu marido, que tá desempregado.
- O que ele faz?
- Engenheiro. Tava trabalhando numa metalúrgica, que faliu. Aí começou a mandar currículo. Só que a situação tá difícil, sabe? Faz mais de 2 anos que ele tá desempregado. Aí teve de prestar concurso.
- Passou?
- Passou. Terceiro lugar.
- Parabéns! E quando ele começa?
- Na verdade, já era pra ele ter começado. Só que cancelaram o concurso por suspeita de fraude. Tão investigando. Parece que as vagas foram compradas, que um pessoal aí tava passando as respostas pra filho de juiz, sei lá... então, por enquanto, ele vai ter que esperar... fiscal ambiental.
- Ah, que bom. Trabalhar ao ar livre, junto com a natureza, isso sim é vida.
- Mais ou menos, Robson. Iam chamar ele pra trabalhar em Mucuriaé. Conhece? Interior do Mato Grosso.
- Cidade calminha, todo mundo conhece todo mundo...
- Até demais. A cidade é tão pequena que quase lincharam o prefeito. Se envolveu numas obras superfaturadas, passou os bens pro nome da mulher, mas não teve jeito. A Federal foi atrás dele e ele agora tá preso. Crime de corrupção, lavagem de dinheiro e envolvimento com quadrilhas. Os amigos dele que também fazem a milícia do local. Lá tem muito posseiro, morre gente direto. Eles não querem nem saber, já vão atirando. Meu marido ia fiscalizar o corte ilegal de madeira. Esses caminhões que transportam árvore da mata virgem, sabe? Só que não é fácil. Lá é tudo terra de coronel. Semana passada morreram uns trabalhadores ligados ao MST. Deu até no Fantástico.
- Bom... o importante é ir pra luta. Pelo menos você tá aqui na batalha.
- É... preciso garantir o leite das crianças. Minha filha acabou de nascer.
- Parabéns! Como ela se chama?
- Maria Eulália.
- Sua filha se chama Maria Eulália?
- Não... o nome dela é Rita... desculpa, tava pensando em outra coisa... Maria Eulália é o nome do hospital onde ela tá internada. Acordou essa madrugada com dor de ouvido, a gente teve que levar ela correndo e daqui a pouco preciso pegar ela. Chegamos às 4 da manhã e nossa senha era 237, acredita? Absurdo esse país...
(...)
- Quer que segue pelo caminho do Waze ou o senhor tem alguma preferência de trajeto?
- Pode ir pelo Waze. Ele tá indicando pra ir reto e depois virar lá na frente, né?
-... Peraí, deixa eu conectar... momentinho... mais um pouquinho... moço, o senhor conhece o caminho? Deu um pau aqui no aplicativo e ele tá recalculando a rota. Tá mostrando uma rua aqui, mas é em Ferraz de Vasconcelos... acho que tá com problema...
- Sem problemas. Eu vou falando. Tá vendo aquele supermercado? Só ir naquela direção.
- O senhor vai pra alguma festa? Assim, todo arrumado... me desculpe falar, mas eu sou direta...
- Nada. Audiência. Batida de trânsito. Me chamaram pra ser testemunha.
- Testemunha? Mas quando é coisa de trânsito não precisa só levar o BO pra delegacia?
- Precisaria se não tivesse morte envolvida. Vou testemunhar contra o motorista. Passou a milhão o farol vermelho e pegou de jeito um motoboy. Morreu na hora, coitado. O motorista tava embriagado, carta vencida, uma porrada de ponto na carteira e ainda fugiu sem prestar socorro. Só pegaram o cara porque acabou a gasolina do carro na outra esquina. Aí me chamaram pra depor. Eu quase ia atravessar a rua quando ocorreu a colisão. Por pouco o desgraçado não me pega. Isso porque eu tava atrasado. Se eu tivesse atravessado a rua um pouco antes, nada disso teria acontecido comigo. Mas, quem mandou? Fiquei lá no banco mais de meia hora esperando a filha da puta da gerente me liberar o empréstimo.
- Empréstimo?
- É. Empréstimo pra pagar um outro empréstimo. Preciso acertar as contas com o atual marido da minha ex-mulher. Aquele corno manso desgraçado. Pedi uma grana emprestada pra abrir um negócio... um café, sabe? Só que as coisas começaram a dar errado, meu ex-sócio me roubou tudo e fugiu do país, me deixou pra trás. Agora eu tenho que assumir as dívidas pro meu nome não ficar sujo no SPC. Fui pedir um valor pro cara, na confiança... só que o pela-saco é um agiota. É claro que eu vou pagar, só que o mão-de-vaca quer tudo até semana que vem, aquele muquirana que não vale a água que bebe... pode ligar o ar, por favor? Tá abafado...
- Ih, moço. Infelizmente tá quebrado. Levei pra arrumar, paguei mil reais, acredita? O mecânico falou que é uma pecinha que fica perto da suspensão, que compromete o funcionamento do ar quando o carro balança. Peça difícil de arrumar. Mas ele falou que tá na garantia.
- E você levou o carro de volta?
- Levei. Mas ninguém atendeu. O portão tava fechado. Toquei na vizinha e ela falou que ele com a família se mudaram pro interior. Iam fechar a oficina. Então, vai desse jeito mesmo (risos). Mas se quiser pode pegar uma balinha.
- Hummm... não tô vendo balinha nenhuma aqui...
- Ah, esqueci. Desculpa, moço. É que eu dei todas prum garoto no semáforo.
- Aí sim. Gesto de caridade. O importante é ajudar quem precisa.
- Ajudar nada. Quero mais é que eles morram. O moleque tava noiado, veio pra cima de mim com um caco de vidro. Meu vidro tava aberto, eu vacilei. É que sem ar, ninguém aguenta esse calorão. Falou pra eu entregar a bolsa, o celular. Eu é que fui esperta. Dei esse saquinho de bala só pra distrair, aí o farol abriu e eu saí arrancando. Passei o maior susto. Bando de craqueiro do caralho...
- Ontem eu tava voltando da balada e vi um carro na minha frente sendo assaltado. O motoqueiro apontou o trezoitão pro motorista. Coisa de segundos. Nessas horas a gente tem que dar graças a Deus que não aconteceu com a gente. A qualquer hora podemos ser os próximos. Questão de sorte ou azar.
- É, não tá fácil pra ninguém. Ainda bem que minha sogra tá dando uma força.
- Ah, é? O que ela faz?
- Tá ajudando a fazer salgadinho pra gente vender.
- Que ótimo! Pelo menos ninguém morre de fome (risos). São gostosos?
- Uma delícia. Pena que ela teve que interromper a produção. Precisa regularizar a situação. Aquele negócio lá, como chama? MEU, MEI... sei lá. Coisa da prefeitura. No começo ela fazia os salgadinhos de boa, sem precisar de nada disso. Mas aí teve uma vizinha que reclamou, chamou a Vigilância Sanitária. Parece que a velha passou mal. Até foi parar no hospital, coitada. Coxinha estragada. Também, falei pra ela: qualidade é importante, Dona Mirtes. Só ingrediente novo. Nada de comida vencida. Mas não. Ela é teimosa, foi lá no supermercado do bairro, aproveitou uma promoção de frango que eles tavam fazendo. Só que a carne tava fora do prazo de validade. Isso é um perigo.
- Nossa, perigoso mesmo.
- Eu tava contando com esse dinheiro pra pagar a escola da Fabiana.
- Da Rita, você quis dizer...
- Não, da Fabiana. A mais velha. Nossa, já tá uma moça, você precisa ver. Minha filha do meu outro casamento. Fiz besteira, casei cedo, engravidei. Gregório, aquele traste. Chegava bêbado em casa, batia na gente, mas eu não deixei barato não. Peguei ele com outra, aí não teve jeito. Peguei minhas coisas, mais a Fabi, e fomos pra casa da minha mãe.
- Pelo menos lá é mais sossegado...
- Até que era. Até eu descobrir que o amante da minha mãe, aquele encosto, filho do demo, entrava de noite no quarto da minha filha querendo fazer graça. Deus me livre, não quero nem pensar numa coisa dessas. Minha mãe conheceu ele na igreja. Ele é pastor. Como são as coisas, né? Durante o dia ele prega a palavra de Deus e de noite quando chega em casa vem fazer pecado com a família dos outros. Isso já vai fazer 2 anos. Minha filha teve que fazer um aborto e nem sabe quem é o pai da criança. Ela tava saindo com 2 caras do colégio... Deus me livre e me guarde, tomara que o pai não seja essa coisa que mora com minha mãe... foi um trauma pra minha filha... deu dezenove reais.
- O aborto?
- Não, moço... ah, desculpe. A corrida. Já chegamos.
- Passa no crédito, por favor.
- O senhor se importaria em pagar em dinheiro? Me desculpe, mas a maquininha tá fora do sistema, porque nosso cadastro foi temporariamente bloqueado, porque eles estão atualizando a ficha dos motoristas, e aí precisam de um tempo pra normalizar a situ...
- OK, sem problemas. Tá aqui.
- Ih, acho que não vou ter trocado...
- Tudo bem, pode ficar.
- Muitíssimo obrigada, moço. É Robson, né? Muito obrigada e um ótimo ano pro senhor.
- Feliz ano novo pra você também.


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