- Robson?
- Patrícia?
- Bom dia.
- Prazer. Pode entrar.
(...)
- É raro ver motorista mulher nessa profissão. Geralmente eu
pego homem... quer dizer, motorista homem.
- (Risos).
Entendi. É que eu tô dando uma força pro meu marido, que tá desempregado.
- O que ele faz?
- Engenheiro. Tava trabalhando numa metalúrgica, que faliu.
Aí começou a mandar currículo. Só que a situação tá difícil, sabe? Faz mais de
2 anos que ele tá desempregado. Aí teve de prestar concurso.
- Passou?
- Passou. Terceiro lugar.
- Parabéns! E quando ele começa?
- Na verdade, já era pra ele ter começado. Só que cancelaram
o concurso por suspeita de fraude. Tão investigando. Parece que as vagas foram
compradas, que um pessoal aí tava passando as respostas pra filho de juiz, sei
lá... então, por enquanto, ele vai ter que esperar... fiscal ambiental.
- Ah, que bom. Trabalhar ao ar livre, junto com a natureza,
isso sim é vida.
- Mais ou menos, Robson. Iam chamar ele pra trabalhar em
Mucuriaé. Conhece? Interior do Mato Grosso.
- Cidade calminha, todo mundo conhece todo mundo...
- Até demais. A cidade é tão pequena que quase lincharam o
prefeito. Se envolveu numas obras superfaturadas, passou os bens pro nome da
mulher, mas não teve jeito. A Federal foi atrás dele e ele agora tá preso.
Crime de corrupção, lavagem de dinheiro e envolvimento com quadrilhas. Os
amigos dele que também fazem a milícia do local. Lá tem muito posseiro, morre
gente direto. Eles não querem nem saber, já vão atirando. Meu marido ia
fiscalizar o corte ilegal de madeira. Esses caminhões que transportam árvore da
mata virgem, sabe? Só que não é fácil. Lá é tudo terra de coronel. Semana
passada morreram uns trabalhadores ligados ao MST. Deu até no Fantástico.
- Bom... o importante é ir pra luta. Pelo menos você tá aqui
na batalha.
- É... preciso garantir o leite das crianças. Minha filha
acabou de nascer.
- Parabéns! Como ela se chama?
- Maria Eulália.
- Sua filha se chama Maria Eulália?
- Não... o nome dela é Rita... desculpa, tava pensando em
outra coisa... Maria Eulália é o nome do hospital onde ela tá internada.
Acordou essa madrugada com dor de ouvido, a gente teve que levar ela correndo e
daqui a pouco preciso pegar ela. Chegamos às 4 da manhã e nossa senha era 237,
acredita? Absurdo esse país...
(...)
- Quer que segue pelo caminho do Waze ou o senhor tem alguma
preferência de trajeto?
- Pode ir pelo Waze. Ele tá indicando pra ir reto e depois
virar lá na frente, né?
-... Peraí, deixa eu conectar... momentinho... mais um
pouquinho... moço, o senhor conhece o caminho? Deu um pau aqui no aplicativo e
ele tá recalculando a rota. Tá mostrando uma rua aqui, mas é em Ferraz de
Vasconcelos... acho que tá com problema...
- Sem problemas. Eu vou falando. Tá vendo aquele
supermercado? Só ir naquela direção.
- O senhor vai pra alguma festa? Assim, todo arrumado... me
desculpe falar, mas eu sou direta...
- Nada. Audiência. Batida de trânsito. Me chamaram pra ser
testemunha.
- Testemunha? Mas quando é coisa de trânsito não precisa só
levar o BO pra delegacia?
- Precisaria se não tivesse morte envolvida. Vou testemunhar
contra o motorista. Passou a milhão o farol vermelho e pegou de jeito um
motoboy. Morreu na hora, coitado. O motorista tava embriagado, carta vencida,
uma porrada de ponto na carteira e ainda fugiu sem prestar socorro. Só pegaram
o cara porque acabou a gasolina do carro na outra esquina. Aí me chamaram pra
depor. Eu quase ia atravessar a rua quando ocorreu a colisão. Por pouco o
desgraçado não me pega. Isso porque eu tava atrasado. Se eu tivesse atravessado
a rua um pouco antes, nada disso teria acontecido comigo. Mas, quem mandou?
Fiquei lá no banco mais de meia hora esperando a filha da puta da gerente me liberar
o empréstimo.
- Empréstimo?
- É. Empréstimo pra pagar um outro empréstimo. Preciso
acertar as contas com o atual marido da minha ex-mulher. Aquele corno manso
desgraçado. Pedi uma grana emprestada pra abrir um negócio... um café, sabe? Só
que as coisas começaram a dar errado, meu ex-sócio me roubou tudo e fugiu do
país, me deixou pra trás. Agora eu tenho que assumir as dívidas pro meu nome
não ficar sujo no SPC. Fui pedir um valor pro cara, na confiança... só que o
pela-saco é um agiota. É claro que eu vou pagar, só que o mão-de-vaca quer tudo
até semana que vem, aquele muquirana que não vale a água que bebe... pode ligar
o ar, por favor? Tá abafado...
- Ih, moço. Infelizmente tá quebrado. Levei pra arrumar, paguei
mil reais, acredita? O mecânico falou que é uma pecinha que fica perto da
suspensão, que compromete o funcionamento do ar quando o carro balança. Peça
difícil de arrumar. Mas ele falou que tá na garantia.
- E você levou o carro de volta?
- Levei. Mas ninguém atendeu. O portão tava fechado. Toquei
na vizinha e ela falou que ele com a família se mudaram pro interior. Iam
fechar a oficina. Então, vai desse jeito mesmo (risos). Mas se quiser pode pegar uma balinha.
- Hummm... não tô vendo balinha nenhuma aqui...
- Ah, esqueci. Desculpa, moço. É que eu dei todas prum
garoto no semáforo.
- Aí sim. Gesto de caridade. O importante é ajudar quem
precisa.
- Ajudar nada. Quero mais é que eles morram. O moleque tava
noiado, veio pra cima de mim com um caco de vidro. Meu vidro tava aberto, eu
vacilei. É que sem ar, ninguém aguenta esse calorão. Falou pra eu entregar a
bolsa, o celular. Eu é que fui esperta. Dei esse saquinho de bala só pra
distrair, aí o farol abriu e eu saí arrancando. Passei o maior susto. Bando de
craqueiro do caralho...
- Ontem eu tava voltando da balada e vi um carro na minha
frente sendo assaltado. O motoqueiro apontou o trezoitão pro motorista. Coisa
de segundos. Nessas horas a gente tem que dar graças a Deus que não aconteceu
com a gente. A qualquer hora podemos ser os próximos. Questão de sorte ou azar.
- É, não tá fácil pra ninguém. Ainda bem que minha sogra tá
dando uma força.
- Ah, é? O que ela faz?
- Tá ajudando a fazer salgadinho pra gente vender.
- Que ótimo! Pelo menos ninguém morre de fome (risos). São gostosos?
- Uma delícia. Pena que ela teve que interromper a produção.
Precisa regularizar a situação. Aquele negócio lá, como chama? MEU, MEI... sei
lá. Coisa da prefeitura. No começo ela fazia os salgadinhos de boa, sem
precisar de nada disso. Mas aí teve uma vizinha que reclamou, chamou a
Vigilância Sanitária. Parece que a velha passou mal. Até foi parar no hospital,
coitada. Coxinha estragada. Também, falei pra ela: qualidade é importante, Dona
Mirtes. Só ingrediente novo. Nada de comida vencida. Mas não. Ela é teimosa, foi
lá no supermercado do bairro, aproveitou uma promoção de frango que eles tavam
fazendo. Só que a carne tava fora do prazo de validade. Isso é um perigo.
- Nossa, perigoso mesmo.
- Eu tava contando com esse dinheiro pra pagar a escola da
Fabiana.
- Da Rita, você quis dizer...
- Não, da Fabiana. A mais velha. Nossa, já tá uma moça, você
precisa ver. Minha filha do meu outro casamento. Fiz besteira, casei cedo,
engravidei. Gregório, aquele traste. Chegava bêbado em casa, batia na gente,
mas eu não deixei barato não. Peguei ele com outra, aí não teve jeito. Peguei
minhas coisas, mais a Fabi, e fomos pra casa da minha mãe.
- Pelo menos lá é mais sossegado...
- Até que era. Até eu descobrir que o amante da minha mãe,
aquele encosto, filho do demo, entrava de noite no quarto da minha filha
querendo fazer graça. Deus me livre, não quero nem pensar numa coisa dessas. Minha
mãe conheceu ele na igreja. Ele é pastor. Como são as coisas, né? Durante o dia
ele prega a palavra de Deus e de noite quando chega em casa vem fazer pecado
com a família dos outros. Isso já vai fazer 2 anos. Minha filha teve que fazer
um aborto e nem sabe quem é o pai da criança. Ela tava saindo com 2 caras do
colégio... Deus me livre e me guarde, tomara que o pai não seja essa coisa que
mora com minha mãe... foi um trauma pra minha filha... deu dezenove reais.
- O aborto?
- Não, moço... ah, desculpe. A corrida. Já chegamos.
- Passa no crédito, por favor.
- O senhor se importaria em pagar em dinheiro? Me desculpe,
mas a maquininha tá fora do sistema, porque nosso cadastro foi temporariamente
bloqueado, porque eles estão atualizando a ficha dos motoristas, e aí precisam
de um tempo pra normalizar a situ...
- OK, sem problemas. Tá aqui.
- Ih, acho que não vou ter trocado...
- Tudo bem, pode ficar.
- Muitíssimo obrigada, moço. É Robson, né? Muito obrigada e
um ótimo ano pro senhor.
- Feliz ano novo pra você também.
Nenhum comentário:
Postar um comentário