sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O dia em que fui campeão de supino


Essa história é velha, verídica e, até então, restrita a alguns amigos. Mas agora eu faço questão de compartilhar.
Primeiro, vamos contextualizar. Meados dos anos 80. Eu estava entrando na faculdade. Naquela época não tinha nada disso que a gente vê hoje: diagnóstico de taxa de bioimpedância, exames ergométricos, personal fitness, Pilates, Apple Watch. Tudo era mais orgânico, mais raiz, mais na raça mesmo. Os aparelhos de ginástica eram raros. A maioria dos exercícios era feita com aqueles pesos de chumbo cujo formato lembra os balões amarrados de festa infantil. Ou um osso de frango, o que sua imaginação permitir.
Ah, só um parêntesis. Pra quem ainda não sabe, nunca pisou numa academia, supino é uma modalidade em que o atleta fica deitado numa mesa estreita e precisa erguer uma barra com pesos colocados nas laterais. Não tem nada a ver com aquela barrinha comestível de doce de banana. Aliás, nem sei por que tal guloseima leva esse nome.
Voltando à contextualização. O clube em questão é a Hebraica. Comecei a fazer musculação (na época chamavam isso de modelagem) quando tinha mais ou menos 15 ou 16 anos. Fiz só alguns meses. Parei. Voltei. E parei de novo. Que nem gente adulta de hoje. Paga a anuidade na Companhia Atlética e só frequenta o primeiro trimestre. Eu não tinha muita paciência com esse esporte solitário. Não aguentava ficar me olhando no espelho por mais de 1 hora tentando levantar um cachorrinho da Cofap em cada braço. Mal consigo me olhar no espelho por 30 segundos, quando escovo os dentes. Era muito narcisismo pra mim. E outra: ao ver os demais frequentadores exibindo seus músculos avantajados, ficava imaginando que demoraria umas 3 décadas pra ficar igual a eles. Dizem que com o tempo seu corpo se acostuma e infla mais rápido, que nem fermento. Mas eu não quis esperar. Preferia passar essas horas dentro do cinema. Ou no Mc Donald’s.
Quem dava aula pra gente era o Roberto. Ele era muito bom. Só que não tinha lá muito saco pra compartilhar seus conhecimentos. Com sua protuberante barriga que escapava da minúscula camiseta regata, preferia ficar na sua salinha lendo jornal. Seu nível de humor, entretanto, era inversamente proporcional ao seu proeminente abdômen. Perto dele, os propedeutas de Harry Potter eram uns anjos. Com aluno novato como eu então, nem se fala. Errar uma série o deixava mais emputecido do que dono de Mercedes quando bate o carro. Só que com o pessoal que treina ele era mais dedicado. Treino de verdade. Aquele povo que passava metade do dia na academia, participando de campeonatos. Eram os halterofilistas do clube. Nossa, faz muito tempo que não ouço essa palavra... enfim, esses atletas se emporcalhavam de giz e faziam aquela cara de quem está defecando pra tentar levantar uma barra com discos de chumbo que parecem rodas de caminhão. Nós, mortais que não nascemos em Asgard, não temos muita noção do peso dessa engrenagem a não ser quando ela cai no chão. A cada término de exercício desses bárbaros, ouvia-se um estrondo. Parecia que estavam implodindo a Hebraica. Eu não sabia se estava em Pinheiros ou em Cabul. E o carrancudo Roberto é quem treinava esses discípulos como se estivessem indo pra guerra.
Aí anos depois eu tava em casa, sossegado, e um amigo meu me liga. Ele me fala do campeonato de supino que a Hebraica iria realizar entre seus sócios. Claro que declinei do convite, alegando estar destreinado. Pode parecer irônico ou patético. Afinal, 2 bimestres de academia não treinam ninguém. Além daquele papo todo do espírito esportivo, ele tentou me convencer de que, caso eu vencesse, iria ganhar uma medalha e um vale-sanduba e refri. Conseguiu.
Outro parêntesis. Naquela época eu era magro, magro, muito magro. Eu até comia bem. O problema era engordar. Uma vez ouvi alguém dizer que eu era o Rei Momo de Biafra. Tudo bem, naqueles tempos não existia bullying, era tudo frescura. E as categorias desse tipo de competição eram divididas por peso. Não por idade, nem por tempo de prática esportiva. Por peso. Como nos anos 80 não tinha isso de ergonomia o cacete a quatro, uma das táticas dos competidores pra perder peso rapidamente e mudar de categoria era mascar chiclete. No meu caso, a única forma de pular de categoria seria me botar no rodízio do Grupo Sérgio antes da prova.
Então lá estava eu, na tenra flor da idade, 18 anos, recém-aprovado na Escola Superior de Propaganda e Marketing, estudante das teorias da Comunicação, leitor assíduo de Camus e Kafka, diante de meus mais temerosos rivais: o Abrãozinho, de 11 anos; o Isaquinho, de 14 anos; e o Jacozinho, de 12 anos, assíduo discípulo das aulas de bar-mitzvah. Fazíamos parte da categoria que leva algum nome associativo à magreza dos candidatos: pena, mosca, pulga, bactéria, sei lá.
Na plateia, só havia 2 tipos de pessoa: as menininhas, que pagavam pau pros levantadores de Fiat Palio; e as tiazonas, aquelas gorduchinhas senhoras mães, tias e avós dos atletas mirins. Eu, portanto, não tinha nenhuma torcida organizada. Muito diferente dos áureos tempos em que ganhei um troféu de judô e conseguia levar uma galera pra me assistir, sem grandes esforços. Aqui, sentia-me como o Rocky Balboa antes da fama, um sujeito desconhecido e pouco amistoso entrando em algum clandestino campo inimigo. Como o melhor do torneio sempre fica para o final, obviamente a categoria peso hidrogênio é que começou o campeonato. Devo ter sido o segundo ou o terceiro a disputar o consagrado prêmio. Tanto faz. Ninguém estava prestando atenção mesmo. De longe, pra quem estava meio perdido com o que acontecia, eu era nada mais do que a visão de um sorvete de coco no palito tentando erguer o pandulho de algumas sacas de arroz.
Até que não fiz feio. Comparado aos atletas que enchiam de orgulho os sócios da Hebraica, eu era poeira cósmica. Mas, pelas leis da Física, consegui elevar praticamente outro Érico. Em termos absolutos, coloquei no alto muito mais quilogramas do que os demais infantes arqui-inimigos judaicos. E, ao final da competição, veio a recompensa: medalha de bronze.
Eu tinha duas coisas a fazer. Ficar quieto, deixar por isso mesmo, e fazer a alegria dos jovens promissores e toda a sua horda presente. Afinal, o que conta é o espírito esportivo. Eu não poderia ali estragar o momento, o início de uma carreira em ascensão. Ou então, lutar pelos meus direitos, denunciar a fraude, fazer valer a ética e a justiça desportiva, sem levar muito em conta a possível decepção da torcida alheia.
Quer saber? Se hoje eu tô cagando e andando pra boa parte da colônia semita, imagina há mais de 3 décadas atrás, no auge da minha rebeldia pré-adulta. Eu era um contestador, e tive de levar isso às últimas consequências, principalmente nas horas em que isso poderia afetar a folgada classe dominante. Pensei em fazer aquilo que é certo e justo, ainda mais quando o que estava em jogo era uma das coisas mais significativas pra mim: a medalha de ouro, um sanduba e um refri. Chamei um dos membros da comissão técnica: “Senhor membro da comissão técnica... errr... acho que houve um equívoco...”.
Agora imagina o miniestádio da Hebraica, quase inteiro, olhando fixamente pra você, com aquela cara de ódio. Imagina o mimado do Jacozinho aos prantos. Quer saber? Foda-se.
- Moço, me vê um cheeseburger e uma Coca, por favor.


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