quinta-feira, 10 de abril de 2008

Triste fim

Era 1991, Plano Collor. Era o Floodland, vinil-bolacha do Sisters of Mercy. Desde aquela época eu freqüentava assiduamente a Nuvem Nove (pra quem não sabe, um sebo de discos, livros e DVDs novos e usados do Itaim). Assim como o cigarro e a cachaça, eu não parei mais. Foi naquela loja que eu fiz as maiores barganhas, que eu levei as mais procuradas raridades (ou até mesmo as raridades que ninguém procurava, como se estivessem lá, esperando por mim). Mas não era só isso. Ia lá com muito gosto, pra ser recebido pelo acolhedor casal José e Júlia. Ali se tornou um reduto dos músicos, dos críticos musicais, dos vagabundos da sonoridade alheia. Uma coisa meio Alta Fidelidade: as mesmas pessoas, indo quase todas as tardes, pra jogar conversa fora ou esquentar polêmicas vazias, inflar o peito, deixar o rosto vermelho a fim de defender uma idéia sobre o assunto. Assim como no futebol. Era na Clodomiro Amazonas (nome mais gay, hein?) que se cultivava o ócio, que se versava sobre o nada. E era uma delícia. Fiz grandes amizades, tendo como ponto de partida a vasculhada geral à procura de uma boa oferta escondida nas prateleiras. A Nuvem era minha válvula de escape, meu Lexotan fonológico. Localizada estrategicamente no meio, entre o caótico fim-de-mundo comercial da Berrini (o Silicom Valley brasileiro) e o caminho mais perto da minha casa, esta parada obrigatória me relaxava. Quando eu estava triste, quando eu estava puto, a Nuvem era minha panacéia. Encontrar os amigos, falar um monte de bobagem, ficar atento às novidades musicais, enfim. Quando eu saía da loja com uma abarrotada sacolinha branca (que já foi azul e, se não me engano, prata ou preta), eu não estava pagando pelo produto consumido. Na verdade a comissão era para esse estado de espírito alienado. Os CDs eram apenas uma pequena gratificação por esses momentos de bem-estar.

Mas tudo um dia na vida acaba. E o que é bom, mais rápido ainda. Nem chegou a completar duas décadas, poeira cósmica diante do tempo universal. Veio a Internet, a prostituta das prostitutas. E. com ela, a pirataria. Este casebre das partituras rebeldes, que sobreviveu aos mais recessivos e estapafúrdios planos econômicos, que escapou da invasão dos prédios high tech da Juscelino, que driblou os botecos chiques do bairro, infelizmente sucumbiu a um cotonete que toca musiquinha, chamado mp3. Nesses últimos dias fúnebres da loja, convido os corsários defensores dos downloads, ingênuos a tal ponto de achar que essa mídia é uma "democracia", a dar um pulinho na Nuvem Nove e ver o que sobrou dela. Acham que resolvem o problema por meio da clandestinidade coreana. Uma atitude séria e digna diante do monopólio de mercado e seus conseqüentes altíssimos preços dos CDs seria boicotar as grandes gravadoras, adquirir produtos de selos independentes, pressionar os fabricantes, criar associações de lojistas, criar o hábito de consumo de produtos usados ou trocados (que não são tributados), e por aí vai. Mas foi a modernidade que matou o mais charmoso sebo paulistano. Ou você acha que o Calanca, dono da Baratos Afins, se tornará um poço de simpatia a partir de então?

A Nuvem marcou seu tempo, criou raízes, educou ouvidos. Muito se deve a essa recôndita loja em meio aos açougues, lotéricas e drogarias do bairro. Embora eu tenha sempre honrado meus compromissos, pagando tudo em cash vivo na hora, sinto que tenho uma grande dívida com eles. O disquinho prateado vai sumir, mas a amizade de uma forma ou de outra vai continuar. Somos maiores do que as tendências. Elas podem até nos mascarar, mas jamais vão nos engolir. Não, não é um grito trotskista da resistência. É apenas um resto de indignação e tristeza por esse momento inevitável, essa fatalidade do comércio. Pra quem ainda não viu, é chocante observar os últimos minutos agonizantes da Nuvem, expondo uma contagem regressiva que parece ser muito mais longa do que realmente é. E já que tudo anda tão virtual, até mesmo o sexo, que a Internet no futuro ao menos nos traga esses pontos de encontro, essa troca insana e inflamada de informações inúteis, esse estado de torpor que nos faz esquecer o trânsito e a vida. Boa sorte a vocês, José e Júlia. Que esse meu grande beijo possa estalar, pra todo mundo ouvir, meu saideiro adeus.

Um comentário:

Sérgio Alpendre disse...

tem que ter bota-fora. e vê se não fura