segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Machucando as teclas

Que teclado ergonômico, que nada. Meu negócio sempre foi a martelada. Não sei se é porque eu sou da geração das máquinas de escrever portáteis, mas me acostumei a sentir o peso de cada quadradinho do tablado escrito, a ouvir o som que a palavra produz em seu processo de gestação, como se fosse o grito de uma criança nascendo. Pessoas que digitam fazendo cosquinha no teclado certamente não viveram essa época mais suada, e dificilmente sentirão esse gostinho de escrever com os ossos. Soube que, numa agência de propaganda, costumavam chamar os módulos datilográficos de moedores de carne. A sensação era essa mesmo, ainda mais quando a agência em questão sugava até a alma de seus escribas. Imprimir idéias era uma carnificina, um trabalho não somente intelectual como alguns vislumbram. Metaforicamente falando, saía sangue dos dedos. Ser criativo era mais visceral, mais filme gore. Mantenho o hábito de digitar como se estivesse esculpindo o texto. Eu, redivivo da Idade da Pedra Lascada, continuo talhando cada letra das minhas frases mentais. Quando fiz um teste pra dar aulas em cursinho, havia na ante-sala um estoque interminável de giz. Sou marujo de primeira viagem, modestamente achei que um par de três resolveria meu problema. Que nada. Eu tinha me esquecido completamente de que costumo escrever forte, fixando a caneta no papel até quase rasgar. Uma vez, uma professora do ginásio me disse que meu caderno parecia ralador de queijo. E, por não ter sido aprovado pelo comitê que avaliou minha performance, fiquei ainda com mais inveja dos professores. Eu queria passar por esta experiência. Mestres e doutores completamente sujos de giz, como se acabassem de sair da lavoura arcaica. Operários do ensino que deixam as suas impressões digitais na camisa de quem conversa com eles. Aquilo sim é uma imagem prototípica do labor em prol do saber. O giz, calcário mineral que serve para instruir a nação, que faz arder os ouvidos no seu contato com a superfície irregular da lousa, nas mãos destes lavradores do conhecimento. Qualquer semelhança com o redator não é mera coincidência. O giz é a veia do propedeuta. Pulsa a cada matéria e culmina jorrando seu sangue de sabedoria no quadro negro tela pictórica renascentista. Isso sim é o grito primal e ululante do processo criativo. Mas tudo bem, vamos voltar a nos acostumar com aqueles sofisticados, insípidos e inofensivos carpaccios de letrinhas.

Nenhum comentário: