domingo, 30 de novembro de 2008

Adeus à Mostra de São Paulo

Manifesto-desabafo da minha mãe:


Quando comecei a freqüentar a Mostra, isso faz 30 anos, já de pronto e espontaneamente comecei a ser divulgadora do evento. Naquela época, era só uma sala de projeção (MASP) e só dois filmes à tarde que se reprisavam à noite. O trânsito era bom e, logo após o segundo filme vespertino, conseguia pegar o ônibus vazio, chegava em casa antes das 7 da noite e já começava a ligar para os meus amigos cinéfilos (todos trabalhavam e só podiam assistir à noite). Aos poucos, a Mostra começou a crescer em número de filmes e de salas. As projeções aumentaram para quatro por dia, no MASP, que se repetiam à noite no Cine Premier (Av. Rio Branco) e no Palmela (R. Pamplona). Mesmo assim, eu continuava com os telefonemas aos amigos recomendando os filmes, os anos passando, as salas aumentando.

Meu relacionamento com a organização da Mostra era bem amigável, julgava eu, pois sempre que algum veículo (Folha, Veja, Estadão, Jornal da Tarde, Rede Record, Notícias Populares, TV Cultura, Rede Bandeirantes) entrava em contato com a Mostra para fazer uma matéria, eles recebiam o número do meu telefone, com a indicação de que era “um pedido do Cakoff”. Eu jamais recusei, mesmo não sendo nada narcisista, pois considerava isso não como um favor, mas sim um prazer de divulgar a Mostra, que era um símbolo da minha paixão por cinema. Os temas abordados dos filmes eram instigantes e profundos: preconceitos (racial, sexual), discriminação e outros bem diferentes dos filmes do circuito comercial.

Fui ganhando uma relativa notoriedade e cinéfilos que não conhecia pessoalmente vinham me pedir dicas e sugestões de filmes nas filas dos cinemas. Isso sem falar que, naquela época, não havia legendagem eletrônica, então o público tinha que saber ler (e ouvir) Inglês, Francês e Espanhol (no mínimo). Já assisti a filme húngaro com legendas em Alemão, filme alemão com legendas em Italiano, filme chinês com legenda em Chinês e Blood Simple, o primeiro filme dos irmãos Coen (na sala do Gazeta) com legendas em Japonês.

Nestes 30 anos, julgava que estava contribuindo para a Mostra crescer, melhorar. O meu círculo de cinéfilos amigos aumentava e jamais passou pela minha cabeça receber de presente alguma coisa material da Mostra, porque eu estava divulgando uma coisa de que gosto e queria que todos pudessem compartilhar do meu prazer. Este era o meu prêmio. Nunca recebi uma permanente grátis sequer, tampouco ingressos ou convites para as festas e quetais.

No último dia da Mostra, nossa turminha de cinéfilos se reunia em um restaurante ou na minha casa, para que a gente escolhesse os nossos melhores e piores filmes vistos. Até que surgiu a idéia (do Elie, do Dr. Sérgio e de mais algumas pessoas próximas) de constituirmos uma espécie de “associação dos amigos da Mostra”, mais tarde denominada Confraria Lumiére, que só foi possível se concretizar quando a Internet tornou-se viável. A essa altura, como alguns amigos jornalistas e críticos freqüentavam as cabines matinais de imprensa da Mostra, começavam a me convidar a ir, e, assim, eu poderia divulgar melhor os filmes pelo fato de poder assistir a eles com uma certa antecedência. Já no primeiro dia de retirar os ingressos na Central da Mostra, eu tinha visto cerca de uma dúzia de filmes imperdíveis para divulgar aos amigos que estavam na fila e, eventualmente, aos formadores de opinião.

Meu pensamento e minha intenção sempre foram no sentido de fazer aumentar o sucesso da Mostra e o interesse por seus filmes. Inclusive eu estava estimulando a freqüência do público jovem com minhas recomendações sobre as Sessões da Juventude. Comecei a telefonar e a mandar faxes ao Prêmio Multicultural Estadão, indicando a Mostra para tal premiação. E nem me importava de ser atrapalhada nos afazeres domésticos (lembram dos bifes à milanesa que eu fazia para congelar?). Uma vez, uma funcionária da Mostra entrou na sala escura, no meio de uma sessão, para me procurar dizendo que, por um pedido do Cakoff, gostaria que eu me deslocasse até o Cinesesc e concedesse uma entrevista ao repórter do Bom Dia São Paulo (Rede Globo), durante a exibição do filme Ten (Kiarostami). É bom lembrar que parte da filmografia do diretor é distribuída pela Mais Filmes, propriedade do organizador.

Tudo bem: eu dava minha contribuição e recebia em troca o prazer de ver 90 ou mais filmes. O prazer de encontrar minha turma de amigos cinéfilos, quando a gente debatia, discutia, concordava ou discordava. Era uma tribo com uma paixão.

Até que, neste último mês de outubro, na semana de 12 a 19, eu já tinha assistido na terça-feira a 2 filmes na cabine (inclusive o “Rumo a Meca”, que me fez recomendar a várias pessoas e recebeu um comentário elogioso na matéria que fiz ao site Cinequanon). Sofri uma lesão no pé e não pude comparecer à cabine de quinta-feira, dia em que o assessor de imprensa Marcos veio, mesmo na minha ausência, expulsar a nós 3 (eu, o Sr. Paul e o Dr. Sérgio de Oliveira) das cabines por ordem expressa do Cakoff, alegando que, caso não nos retirássemos da sala, ele estaria correndo o risco de perder o emprego.

Ninguém entendeu essa discriminação. Por quê? Por sermos idosos os três (justo agora que o Leon vai ser vovô)? Por não termos diploma de jornalista (mas uma porção de pessoas que vão às cabines também não têm)? Fui tentar esclarecer o fato com a Renata e o Leon e eles me alegaram o seguinte:
(Renata): “A senhora é a “vedete” dos assinantes. Já imaginou se todos os outros assinantes reivindicarem a entrada nas sessões de imprensa?”
(Cakoff): “Cada filme tem um contrato de exibição; se na sessão de imprensa estiver presente uma única pessoa que não é jornalista, fica caracterizada sessão para público.”

Ora, nas cabines da Mostra já encontrei várias vezes estudantes de cinema que não são jornalistas. E os 80 assinantes da permanente integral que conheço jamais iriam reivindicar a entrada nas cabines porque posso dizer que eles me consideram especial, única na história da Mostra. Afinal, não é todo ano que uma pessoa do público sobe ao palco para entregar o troféu de Melhor Filme (Cem Passos, de Marco Túlio Giordana). Não é todo mundo que tem a oportunidade de aparecer na homepage do site da Mostra prestigiando os convidados, no caso, trocando breves palavras com o diretor russo Alexander Sokhurov.

Em seguida, o Cakoff me disse: “não quero mais falar sobre isso, vamos pensar (e você pode me dar umas idéias) em como incrementar a presença do público nos debates (por exemplo, o do Nicolas Klotz tinha no máximo 10 pessoas na platéia, excluindo-se os jornalistas).

Então, pergunto, por que essa dupla mensagem em cima de mim? A Mostra me usa para ser divulgada nas várias mídias, para dar entrevistas, para dar subsídios aos debates e, por outro lado, me acha um estorvo nas cabines de imprensa? Por que a organização da Mostra só se lembra do número de telefone de casa quando é do seu interesse? Para me expulsar das cabines, manda um moleque de recados, mesmo eu não estando presente no dia?

Nos primeiros anos, o espírito da Mostra era o de apresentar filmes alternativos ao circuito comercial, de conteúdo, de autor, de geografias diversas. Isso gerava um interesse diversificado de públicos vários, levando estas pessoas a discussões e debates. Era o que acontecia com meu grupo heterogêneo de amigos cinéfilos, de diferentes profissões, gostos, opiniões, idades, religiões. Aos jovens de agora, “calouros” da Mostra, digo: vocês não podem imaginar como era efervescente o encontro de pessoas durante os filmes e as discussões. A boa conseqüência é que um abria a cabeça do outro, e nós todos evoluímos muito: aprimoramos nosso gosto, aprendemos a “enxergar” coisas nos filmes, crescemos e nos enriquecemos como indivíduos. Hoje, com a quantidade perversa de 400 e tantos filmes, o que acontece na real é: um bando de baratas-tontas cinéfilos correndo (com tênis do patrocinador Adidas?) de uma sala para outra, suando (repondo líquidos com a água do patrocinador Sabesp?), na esperança de descobrir um talento promissor. O resultado desse cansaço todo, infelizmente, é um balanço de um compêndio muito fraco. Com a Internet e o interesse das distribuidoras, entre outros fatores, o prazer da garimpagem deixou de ter sua razão de existir. Já se foi o tempo das “descobertas” de novos diretores com o gabarito e o frescor de um Tarantino (Cães de Aluguel), Hal Hartley (Confiança), Irmãos Coen (Blood Simple), Oshima (Império dos Sentidos), Jos Stelling (Homem da Linha). Não esses ilustres desconhecidos, como África Unite, Alvorada Sunset, Coyote, Harrison Montgomery, etc. A triagem era feita a dedo pelos organizadores, e não por atacado como agora (será que quantidade é uma exigência dos patrocinadores?).

Claro que existem filmes muito bons, de diretores consagrados. Mas a maioria deles é pré-estréia, então para vê-los não vou me estressar com correria, filas, salas cheias, atrasos, gente chutando minha cadeira nas costas, ou conversando, ou fazendo piquenique. E, citando Daniel Piza, em seu artigo publicado no Estadão, “quantidade gera... quantidade”.

Por esses motivos é que estou dizendo ADEUS À MOSTRA DE CINEMA DE SÃO PAULO. Nunca mais ponho os pés em suas salas nem visto mais a camisa (já doei todas as camisetas que tinha ao meu pedreiro).

Minha paixão pelas artes não morreu. Vou continuar cultivando o prazer dos teatros, das óperas, dos concertos, dos recitais e, é claro, do cinema. Espero continuar encontrando outros apaixonados como eu nos cursos do SESC, da Cinemateca, festivais de Curtas, Documentários, Latinos, Retrospectivas e, quem sabe, se tiver saúde e dinheiro, nos festivais do Rio, Gramado, Brasília, Ceará, Paulínia, Recife, Buenos Aires, Toronto, Tóquio, Nova York...

Anette Fuks